Este conteúdo faz parte do projeto “Rede de Atenção à Saúde na região metropolitana do Rio de Janeiro: trajetória e perspectivas”, executado pela Chamada CNPq / FIOCRUZ / COC No. 08/2021. Antonio Werneck foi entrevistado nos meses de março e abril de 2022 por Carlos Henrique Assunção Paiva e Maria Tereza Fonseca da Costa. A íntegra de seu depoimento pode ser vista nos nossos Depoimentos Históricos.
Antonio Joaquim Werneck é um médico de família formado em 1977, cuja trajetória inclui passagens tanto por postos de saúde em favelas do Rio de Janeiro quanto pelos três níveis de gestão do sistema de saúde: municipal e estadual no Rio de Janeiro, e federal. Sua história na Medicina e na Gestão Pública atravessa o desmembramento do Estado da Guanabara, a democratização do Brasil, a introdução das tecnologias de informação e comunicação na gestão da saúde e a própria implantação do SUS no país.
Militante e chefe de posto de saúde
Filho de militantes políticos de esquerda, Antonio Werneck formou-se em Medicina em 1977 pela Escola de Medicina e Cirurgia, uma das escolas da Federação das Escolas Federais Isoladas do Estado da Guanabara (Fefieg), hoje Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). A esta época, como militante no Partido Comunista Brasileiro (PCB), Werneck já tinha participado das primeiras passeatas de estudantes de medicina contra a ditadura civil-militar. Em 1978, começou a trabalhar no Sindicato Rural, nos municípios fluminenses de Itaboraí e Casimiro de Abreu, iniciando assim seu contato e experiências com comunidades desassistidas.
No contexto dos anos 1970, Werneck se envolveu nas primeiras experiências institucionais de organização e oferta de serviços básicos de saúde. Em Niterói, região metropolitana do Rio de Janeiro, atuou como “o único médico numa região favelizada”, como conta. Até 1979, além de Niterói, atuou também no Morro do Borel, na capital do estado, expandido sua experiência profissional no campo da Atenção Primária à Saúde. Ainda em 1979, avançaria em sua formação como sanitarista, com a realização de curso básico em Saúde Pública na Fundação Oswaldo Cruz. Militante, médico recém-formado e em contato com inúmeros pesquisadores da Fiocruz, Werneck se viu na posição de escolher se iria para a política “lá de cima”, do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS); se ficaria na Academia ou iria “para o front”, nas suas palavras. A sua escolha não o impediu de ser um mobilizador pela democracia e conquista de direitos.
“Eu optei por outra linha e fui trabalhar em posto de saúde, ficar no posto de saúde, na emergência do hospital, articulando com o movimento que…acolhesse pessoas que precisavam do atendimento ali, no dia a dia, né?”
Atuando na Saúde de Família do município de Niterói, foi chefe de posto de saúde até 1982, tendo presenciado a formação dos primeiros Agentes Comunitários de Saúde, quando não havia concurso público. O “Werneck militante” também se sentia numa atuação mais coerente no campo da esquerda, pois via que no movimento comunitário as correntes eram mais cooperativas entre si, sem tantos conflitos.
Ingresso na gestão pública
Sua entrada na área de gestão da saúde foi em 1983, início de ano legislativo como Subcoordenador da Região Metropolitana, sendo Leonel Brizola o governador e Eduardo Costa o secretário de saúde. Naquele período, a saúde do estado estava centralizada no município do Rio de Janeiro e a Região Metropolitana concentrava os hospitais. Portanto, a orientação era discutir a municipalização das unidades de saúde, o que resultou na divisão do Estado em 10 regiões de saúde. Em retrospecto, Werneck recorda os muitos entraves para de fato conferir autonomia aos diretores de hospitais e secretários municipais da área.
“A gente estava focado em resolver problemas graves, que a gente considerava de saúde. Por exemplo, o sarampo, a lepra, a tuberculose. Eu acho que o nosso foco nessa época foi… toda unidade de saúde, seja hospital, seja posto, o conceito de rede [era] o seguinte: vamos trabalhar para acabar com essas doenças. Não tem esse negócio não, era todo mundo junto, entendeu?”
A criação de rede de saúde era difícil, e ele percebia que a secretaria de saúde do estado tinha mais entraves para executar este plano do que alguns projetos isolados de municípios. Ele citou como exemplo o Projeto Niterói, que visava integrar os poderes municipal, estadual e federal – através das Ações Integradas em Saúde (AIS) – para implantar uma rede de saúde mais eficiente. Outro problema que Werneck teve de lidar nesta época, e continuaria enfrentando em outros órgãos, eram os deputados “donos” de hospital e dos Postos de Assistência Médica (PAM), que não permitiam uma interferência do poder público na gestão.
Antonio Werneck atuou na secretaria de saúde do estado do Rio até final de 1986. Com o início de um novo mandato de governador, 1987, ele volta para o movimento comunitário, exercitando a Medicina no combate à lepra em municípios como São Gonçalo e Nova Iguaçu. Também nesta época cursa o Mestrado em Psicossociologia das Comunidades.
Por dentro da gestão municipal
Werneck retorna para a gestão pública em 1990, mas desta vez para a Prefeitura, assumida por Marcello Alencar. Ele continua tentando apoiar o avanço do processo de municipalização, mas desta vez encontrando resistência do lado do governo do estado. Segundo Werneck, a equipe da Secretaria “fez o bunker” na prefeitura para resolver os problemas. Foi quando o município oficializou os Agentes Comunitários de Saúde. Assim, em 1991, começa, de fato, a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS), e entra em vigor a Norma Operacional Básica (NOB) 01/91, que previa a municipalização das unidades e criou uma grande polêmica ao definir que o município deveria arcar com os salários e posterior aposentadoria dos servidores federais. A equipe da prefeitura, então, “bateu de frente” com o Ministério da Saúde, argumentando ser necessária uma política de investimentos.
Nesta mesma época, para além da sua própria experiência em postos de saúde há mais de 10 anos, a análise detalhada da estrutura de gastos da prefeitura escancarou a necessidade de haver maior investimento na Atenção Básica, para que os usuários não chegassem desnecessariamente aos níveis de média e alta complexidade. Problemas como equipamentos e higiene precária eram agravantes para os atendidos nas unidades.
“Os antibióticos para UTI, internação (…) pegavam 12% dos gastos da Secretaria de Saúde com medicamentos. E os 500 remédios, medicamentos da Atenção Básica pegavam 1%, ou 0.5%, uma coisa assim – é claro que são mais baratos e essa é uma relação que existe, mas era bastante distorcida”.
Também foi nessa gestão que a prefeitura começou a implantar programas que poderiam ser considerados “embriões” de redes, porque padronizavam os procedimentos, como Programa de AIDS e o Programa da Mulher e da Criança. De certa forma, começava a formação de rede sem se falar em rede. Na visão de Werneck, somente com a criação do Programa Saúde da Família, em 1994, é que se iniciam as discussões sobre Rede de Atenção à Saúde. Era, no caso, uma conexão entre as diferentes estruturas da prefeitura (Educação, Promoção Social, Saúde etc) para dar suporte à Atenção Básica no município.
Avaliando o primeiro ano de SUS, 1991, afirma Werneck que o Sistema “não tinha conceito, projeto ou uma base teórica”, e que os estados e municípios eram fracos para fazer sua implantação conforme deveria ser. A reorganização do sistema começa a ter uma “luz no fim do túnel” com a norma NOB-SUS/96 redefinindo as responsabilidades dos estados e municípios sobre a gestão da saúde em seus territórios, reforçando a estratégia da municipalização.
Extinguir o INAMPS; fortalecer os municípios
Da experiência da prefeitura, Werneck vai diretamente para o centro da gestão da saúde no país: o Ministério da Saúde. Atua, entre 1997 e 1998, como Secretário de Assistência à Saúde. Lá, uma de suas funções era “de fato” extinguir o INAMPS, já extinto por lei federal em 1993 mas que, na prática, continuava existindo. Mas seu desafio, no dia a dia, continuou sendo apoiar a municipalização, e a primeira estratégia foi definir um valor de recursos fixo (por habitante) para ser transferido do governo federal aos municípios, abandonando a transferência por produção. As diretrizes eram as da NOB-SUS/96, mas ela não era clara o suficiente:
“A Norma Operacional 01/96 (…) era muito boa no seu conteúdo teórico, mas era incompreensível para os 5800 Secretários Municipais de Saúde. Os secretários não estavam entendendo o que era municipalizar a Atenção Básica e fazer a transferência de recursos automaticamente, baseado em critérios epidemiológicos e sociais. Deixar de transferir pela produção e transferir pela condição de saúde daquela população”.
Foi necessário para a equipe da secretaria criar um livro, como um manual, chamado “O Que Muda com o PAB?”, que era o Piso da Atenção Básica, explicando que os municípios passariam a receber o valor de R$ 10 por habitante, por ano, para executar a Atenção Básica, o que de modo geral foi um acréscimo significativo no orçamento. Para além da norma em si, Werneck conta que houve um esforço do Ministério para criar uma estrutura que de fato dialogasse com os secretários estaduais de Saúde e discutisse o desempenho da rede. É quando se cria o Programa de Avaliação de Desempenho das Secretarias Estaduais de Saúde.
No município, a briga continua
Em 1998, Werneck volta do Ministério para o município do Rio, assumindo a Superintendência de Saúde. Neste momento foi iniciada a divisão do município em 10 Áreas de Planejamento. Na sua avaliação, o Rio estava abaixo da média nacional em termos de municipalização e estadualização das unidades, chegando a devolver hospitais estaduais para o governo federal. Ainda era, ao mesmo tempo, muito difícil desvincular os hospitais dos seus “caciques” eleitorais.
“A influência política, externa à saúde, por interesses ou de grana – do cara botar grana – ou interesse de poder e de influência, ou de alguns benefícios – ter uma enfermaria só para ele e mandar os eleitores fazerem lá os exames na hora, ser atendido por quem queria, etc, etc, isso é muito poderoso no Rio. Isso, para romper com isso, é fogo”.
Até sair da prefeitura do Rio de Janeiro em 2002, Werneck esteve no centro dos debates sobre a transferência de recursos federais, inclusive lidando com a realidade na qual o município do Rio atendia muitos usuários dos serviços de saúde de outros municípios, e não conseguia avançar na Atenção Básica apesar de ter um dos maiores PIBs per capita do país. Após esse período, o sanitarista pôde ver as iniciativas federais de integração, como o SAMU, funcionarem melhor.
Um panorama atual
Apesar da real implantação do SUS nos últimos 30 anos, para um profissional da saúde como Werneck, que se manteve aproximadamente de 1982 a 2002 na gestão pública do município e do estado, os profissionais de formação mais recente seguem um perfil, segundo ele, distinto daqueles que militaram em sua geração. Isto traz implicações importantes para a qualidade do atendimento à população.
“Eu acho que a rede pública degringolou de uma forma tal nos últimos dez anos, que é incrível. A dedicação que eu sentia há 40 anos atrás, quando entrei na rede em 77, eu não vejo mais não. (…) As pessoas não ficam no hospital mais de um ano, dois anos. Nem tem mais gosto de dizer: ‘Sou do [Hospital] Salgado Filho’, ‘sou do [Hospital] Souza Aguiar’. Não tem mais esse negócio”.
Tal leitura, que pode ser discutível, acerca da identidade e dedicação dos trabalhadores da saúde fluminenses, certamente se articula com suas próprias experiências institucionais ao longo do processo de implantação do SUS. Werneck atuou, de 2003 a 2006, na Fiocruz, e no ano de 2007 assume o cargo de diretor-presidente do Instituto Vital Brazil, permanecendo até o ano de 2016. Em todos esses espaços institucionais, viu tanto políticas públicas preconizarem a integração entre as diferentes instituições e esferas de governo como, também, as instituições em si manterem seus projetos isolados. Para ele, é preciso que os profissionais da saúde tenham uma capacitação permanente na área, e que o conceito e a marca do SUS sejam mais divulgados e onipresentes em cada unidade de saúde do Sistema, promovendo maior reconhecimento da população.
Tais questões, decerto, não resolvem os desafios colocados para a construção da Rede de Atenção à Saúde fluminense, mas sem nenhuma dúvida representam uma contribuição importante no sentido do enfrentamento dos problemas hoje colocados.
Como citar este texto
VAZ, Carolina. Os desafios de construção da Rede de Atenção à Saúde no Rio de Janeiro: uma conversa com Antonio Werneck. Site do Observatório História e Saúde – COC/Fiocruz, 2024. Disponível em: <https://ohs.coc.fiocruz.br/posts_ohs/os-desafios-de-construcao-da-rede-de-atencao-a-saude-no-rio-de-janeiro-uma-conversa-com-antonio-werneck/>. Acesso em: XX de xxx. de 20XX.