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Expresso

Noel Nutels e a crise humanitária nas terras indígenas

07/02/2023

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Noel Nutels em meio a indígenas

A divulgação da crise humanitária na terra indígena Yanomami, em Roraima, estado da Região Norte do Brasil, após visita de integrantes do Governo Federal à região, ilustra o papel fundamental do Estado e das ações de saúde pública na sobrevivência dos povos originários.

A invasão das terras indígenas por garimpeiros e a matança de seus ocupantes não é novidade. O que há de novo é a mudança de postura da administração do país, que se mostra disposta a coibir o garimpo ilegal como principal forma de frear a mortandade dos Yanomami por doenças e assassinatos e de se fazer presente com médicos e instalações de saúde nas localidades mais remotas.

Há décadas estudiosos registram iniciativas de defesa dos povos indígenas por parte daqueles que se empenham em mudar essa realidade, mesmo sem apoio da esfera governamental. Foi o caso do médico Noel Nutels, cuja trajetória foi analisada pelo pesquisador do Observatório de História e Saúde (OHS) da Fiocruz Carlos Henrique Paiva.

Paiva escreveu o artigo “A saúde pública em tempos de burocratização: o caso do médico Noel Nutels” (2003). O pesquisador mostra no texto a dificuldade na implementação das políticas públicas a partir dos anos 1930, em função de uma crescente burocracia estatal, principalmente durante o governo Getúlio Vargas.

No entanto, o trabalho de Noel Nutels com os indígenas teve início mesmo nesse contexto, quando decidiu participar da Expedição Roncador-Xingu, em 1943. A expedição, organizada no período da Segunda Guerra Mundial, tinha como objetivo desbravar o interior e preencher os vazios do país, ligando-o de norte a sul. Dela resultou, em 1946, a criação do Parque Indígena do Xingu, oficializada em 1961.

Cabia inicialmente aos membros da expedição criar campos de pousos aéreos que permitissem a construção de uma rota que ligasse o sul ao norte pelo interior do continente. Nutels foi nomeado médico da Expedição em 1949, mesmo ano em que os irmãos Villas-Bôas passaram a liderar a Expedição e estabeleceram contato amistoso com os povos indígenas, que sofriam por epidemias e alta mortalidade infantil.

Nutels, bastante impactado pela experiência, decidiu, em 1951, especializar-se na luta contra a tuberculose. A carreira de Nutels como tisiologista (que é a denominação do especialista no tratamento de doenças das vias aéreas inferiores, incluindo traqueia, brônquios, pulmões e estruturas relacionadas) começou com os trabalhos da Expedição, que, devido à atuação dos médicos e dos irmãos Villas-Boas, não se restringiu aos serviços militares e estratégicos impostos pelo governo.

O trabalho de Nutels e das instituições relacionadas ao saneamento no interior do país mostrou o que já tinham denunciado Belisário Penna e Arthur Neiva na década de 1910 sobre as condições de vida dos brasileiros. Para estes, o sertanejo, o habitante do interior do país, vivia sob o abandono e desamparo das autoridades públicas, em condições sanitárias inadequadas. Tal situação era responsável pelo alto número de vítimas de doenças facilmente controláveis.

Voltando ao trabalho de Nutels nas décadas de 1940 e 1950, o médico teve a ideia inovadora de criar um serviço aéreo de atendimento médico às populações do interior do país. No entanto, no difícil ambiente político da época, o projeto não foi absorvido pelo Estado. Assim, de 1952 a 1956, a equipe organizada por Nutels atuou no campo da saúde pública de modo bastante improvisado, sem o reconhecimento oficial do Estado. Dependia de recursos e apoio, como da aviação, graças às relações pessoais de Nutels. Somente mais tarde, no governo de Juscelino Kubitschek, o médico conseguiu o apoio necessário.

Carlos Paiva destaca que Noel Nutels se empenhou em defender a assimilação social de comunidades, indígenas ou não, que desconheciam a presença das instituições do Estado. E “(…) nessa luta a sua ferramenta foi a saúde pública”, reconhece Paiva. O pesquisador defende que a mudança na percepção sobre a “gente brasileira”, que gerou um grande movimento pela reforma da saúde pública no início do século XX, ainda continuava nos anos 1930. As atividades de Nutels são exemplos. Ele e os médicos do período “sabiam que o ‘mal do Brasil’ não parecia ser fruto de uma(s) raça(s) débil(éis), mas da ausência de um Estado que organizasse e financiasse instituições sanitárias em todo o país”.

Em sua atuação nacionalista, Paiva afirma que Nutels não salvava apenas indivíduos doentes, mas “elementos culturais”. Diferente de um médico que desenvolve suas atividades como uma simples prestação de serviço a um cliente, para Nutels havia mais em jogo. “O tratamento por si só é um fenômeno coletivo, envolve muitas pessoas, pois se percebe desde o início entre elas um laço de solidariedade (…). O processo da cura envolve muito mais que o fenômeno biológico da doença, está em questão, ao mesmo tempo, a sobrevivência de um povo e a invenção de um país. Aqui o médico é, um mesmo tempo, doutor e militante político”, analisa Paiva.

Confira na biblioteca do site o artigo de Carlos Henrique Paiva, “A saúde pública em tempos de burocratização: o caso do médico Noel Nutels”.

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