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Marcas da escravidão, cicatrizes da varíola: a utilização dos métodos de inoculação e vacinação

Gutiele Gonçalves dos Santos

Formada em Licenciatura em História pela Universidade Federal do Piauí com período de formação na Universidade de Coimbra, em Portugal. Mestre e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde pela Casa de Oswaldo (COC/FIOCRUZ) e integra o grupo de pesquisa Escravidão, Raça e Saúde – CNPq. É coordenadora Geral da APG-Fiocruz-RJ (2023-2024) e membro do Conselho Editorial da Revista África e Africanidades.

 

10/05/2024

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Charge sobre a campanha de vacinação contra a varíola, publicada em 1904 no jornal O Malho. Fonte: Base Arch.

As pesquisas que se dedicam a compreender a vida dos sujeitos escravizados a partir da confluência entre a história da saúde e da escravidão no Brasil começaram a se desenvolver, sobretudo, a partir da década de 1990, mas é somente em 2010 que começam a ganhar visibilidade no cenário da produção historiográfica. O livro Escravidão, doenças e práticas de cura no Brasil organizado pelos historiadores Tânia Pimenta e Flávio Gomes, publicado em 2016, chama a atenção para essa questão e ressalta a importância do desenvolvimento de pesquisas sobre história das doenças e da saúde em conexão com a história da escravidão.

Nas últimas décadas, têm sido incorporadas novas discussões que nos ajudam a compreender a ciência a partir de outras perspectivas e abordagens historiográficas sobre a produção do conhecimento como um processo coletivo, com atores, práticas, localidades e saberes que contemplam a diversidade de culturas em diferentes sociedades.

Nesse sentido, as discussões sobre a varíola nas agendas de História da Saúde têm contribuído, num âmbito internacional, para uma renovação historiográfica que aborda essas conexões entre ciência, medicina, saúde e sociedade através de uma abordagem que leva em consideração o contexto e a complexidade intrínseca desse tema.

O 1º Seminário Internacional Ciência, Saúde e Epidemias – um olhar histórico sobre a varíola reúne especialistas de diversos países, como Brasil, Espanha, México, Argentina e Chile, que compartilharão suas pesquisas sobre temas como epidemias, vacinas, conhecimento científico, saúde pública, escravidão, população negra e indígena, entre outros assuntos relacionados à história da varíola. O evento será online, transmitido pelo canal da COC no Youtube, e terá início às 9h do dia 14 de maio. Interessados em receber certificado devem se inscrever pelo Campus Virtual da Fiocruz.

A varíola, também conhecida como bexigas, foi a doença mais devastadora que atingiu a Europa, Ásia, África e as Américas, desde a antiguidade até o final do século XX. Em 1980, a OMS declarou a varíola como uma doença erradicada e se tornou a primeira doença a ser eliminada por meio de uma vacina. A história da varíola é marcada por inúmeros esforços para conter os danos causados por essa enfermidade, o uso da inoculação e da vacinação constituem algumas das tentativas utilizadas para evitar a doença ou, pelo menos, a sua forma grave.

Poucas pessoas conseguiam escapar da varíola com vida, mas quem sobrevivia não voltava a se contaminar com a doença. A partir essa observação, diferentes povos, em distintas regiões do mundo, como Ásia, África e, posteriormente, na Europa e nas Américas tentaram provocar a doença de uma forma mais branda para que as pessoas não voltassem a se contaminar. Este método ficou conhecido como inoculação.

De acordo com Tania Fernandes, a prática da inoculação também era conhecida pelo nome de variolização e “constituem-se como formas de introdução do vírus da varíola no homem com a finalidade de induzir a instalação da própria doença”. Nesse método, como não havia a atenuação da virulência, algumas pessoas desenvolviam a forma grave da doença e não sobreviviam devido à intensidade dos sintomas provocados pela enfermidade. Vale destacar que a inoculação foi sendo substituída aos poucos pela vacinação “conforme demonstrava-se sua maior eficiência” (FERNANDES, 2003:463-464).

A vacina antivariólica foi introduzida em 1798 pelo médico inglês Edward Jenner, marcando um avanço na prática da inoculação. Enquanto no método da inoculação se empregava pústulas de outros indivíduos infectados com varíola, na vacinação utilizava-se o líquido proveniente da pústula bovina, uma lesão que surgia nas vacas devido a uma doença chamada cowpox, e que apresentava semelhanças com a varíola. Jenner observou que, nas comunidades rurais, pessoas que tinham contato direto com bovinos demonstravam imunidade à varíola, o que o motivou a realizar a descoberta da vacina.

No Brasil, as primeiras pessoas que deveriam receber a inoculação e a vacinação eram “os meninos índios e negros” conforme carta circular de 9 de julho de 1799 expedida pelo príncipe regente D. João VI a todos os governadores dos domínios ultramarinos. Além de serem os primeiros a utilizarem um método que ainda tinha sua eficácia questionada, foram alvos de alguns experimentos para testar a vacinação e incentivar a população.

Em 1803, um documento assinado por um médico chamado R. Amiel, relata o caso de 6 escravizados vacinados que foram colocados dentro de navio negreiro em que havia ocorrido um surto de varíola. Durante 15 dias, dentro de um pequeno navio, fizeram com que os 6 escravizados vacinados habitassem, dormissem e comessem com os outros que estavam infectados. O relato termina com a exaltação do resultado do experimento, no qual “seis rapazes tendo dormido nas mesmas camas com os infeccionados das bexigas, em contato com suas pústulas, comendo e bebendo nos mesmos vasos, não foram de modo algum tocados pelo contágio e se conservaram em perfeita saúde”.1

A história da inoculação e vacinação envolve múltiplas facetas e pode ser analisada a partir dos âmbitos científico, político, social e econômico, todavia ainda precisamos entender de forma mais aprofundada como a experiência da escravidão impactou e influenciou no desenvolvimento dessas práticas médicas. Esses métodos estavam inseridos em circuitos globais de produção de conhecimentos e ocorriam em grande medida concomitante aos fluxos transatlânticos de pessoas.

A forma de compreender a etiologia, transmissão e terapêuticas de uma doença estão imbuídos de significados que só são possíveis de serem analisados dentro um quadro teórico que aborde a interação entre história, sociedade e medicina (Armus, 2003). A vacinação contra a varíola foi uma experiência global, inserida em dinâmicas e contextos locais, adaptada e difundida em resposta às particularidades de cada região.

Os africanos tinham conhecimento da prática de inoculação antes mesmo desse método se espalhar para a Europa e as Américas. Assim, é importante realizar pesquisas que busquem recuperar essas agências contribuindo para outras formas de compreender a História das Ciências, como apresenta Richard Sheridan no livro Doctors and slaves: a medical and demographic history of slavery in the British west Indies, 1680-1834 publicado em 1985, levando em consideração que a experiência da escravidão impactou e influenciou no desenvolvimento de diversas práticas médicas.

Com a pandemia de COVID-19 a sociedade se mostrou mais interessada em entender sobre o processo de desenvolvimento de uma vacina. Assim, pesquisar sobre a história da varíola nos permite explorar as intersecções entre passado e presente, especialmente para refletirmos sobre a importância da ciência, como o conhecimento científico é construído, quem contribui para o avanço da ciência e quais são os interesses envolvidos por trás daqueles que propagam a desinformação e fomentam a negação de pesquisas científicas.

Dessa forma, as pesquisas relacionadas a varíola contribuem não apenas para a história da saúde, mas também pode contribuir para uma compreensão mais abrangente e contextualizada das dinâmicas que permeiam a interação entre história das ciências e da medicina e que ressaltam a participação da população negra e indígena como agentes dos processos históricos e não apenas como objetos de análises históricas.

Além disso, explorar essas conexões oferece possibilidades de analisar não apenas as estratégias de controle da varíola através da inoculação e vacinação, mas também sobre as dinâmicas políticas, sociais, econômicas e culturais que moldaram as decisões da saúde pública.

1 AMIEL, [r…]. Memória sobre a vacinação ou exposição de fatos que provam a eficácia desta prática em prevenir as bexigas. [S.l.:]. 89 f., Original. Biblioteca Nacional, 1803.

Referências bibliográficas

ARMUS, Diego. Disease in Historiography of Modern Latin America, In: ARMUS, D. (Ed.) Disease in the History of Modern Latin America: from malaria to AIDS. Durham: Duke University Press, 2003, pp.1-24.

FERNANDES, Tania. Imunização antivariólica no século XIX no Brasil: inoculação, variolização, vacina e revacinação. História, Ciências, Saúde. Manguinhos, vol. 10 (suplemento 2): 461 -74, 2003

PIMENTA, Tânia Salgado; GOMES, Flávio (Org.). Escravidão, doenças e práticas de cura no Brasil. Rio de Janeiro: Outras Letras, 2016.

SHERIDAN, Richard B. Doctors and slaves: a medical and demographic history of slavery in the British West Indies, 1680-1834. Cambridge University Press, 1985.

ROSENBERG, Charles E. Explaining epidemics and other studies in the history of medicine. Cambridge: Cambridge University Press, 1992.

Como citar este texto

SANTOS, Gutiele Gonçalves dos. Marcas da escravidão, cicatrizes da varíola: a utilização dos métodos de inoculação e vacinação. Site do Observatório História e Saúde – COC/Fiocruz, 2024. Disponível em: <https://ohs.coc.fiocruz.br/posts_ohs/marcas-da-escravidao-cicatrizes-da-variola-a-utilizacao-dos-metodos-de-inoculacao-e-vacinacao/>. Acesso em: XX de xxx. de 20XX.

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