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Artigo
Por Eliza Toledo, pós-doutoranda Inova Fiocruz, e Ilana Löwy (CNRS França). Professoras do curso “Raça, gênero e medicina: a diferença como ferramenta da discriminação” junto ao pesquisador Luiz Antonio Teixeira.
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Foto: Paula Fróes/Gov. Bahia.
“Racismo? No Brasil? Quem foi que disse? Isso é coisa de americano. Aqui não tem diferença porque todo mundo é brasileiro acima de tudo, graças a Deus. Preto aqui é bem tratado, tem o mesmo direito que a gente tem”.
Em reflexão imprescindível, a filósofa e antropóloga Lélia Gonzalez analisava, em 1984, o racismo e o sexismo na cultura brasileira. Encoberto pelo mito da democracia e harmonia racial que até mesmo algumas vertentes historiográficas buscaram sustentar entre o século XIX e começo do século XX, o racismo em nossa história encontrou amparo também em correntes científicas.
Historicamente, neste mesmo recorte temporal, médicos e biólogos supunham que os corpos não brancos eram essencialmente diferentes dos brancos. Essa noção incluía elementos como uma suposta suscetibilidade diferente a patógenos, reação distinta à dor, e composição psicológica/cognitiva singular. Embora a versão forte dessa suposição seja geralmente negada hoje, sua versão mais fraca, com foco na “diversidade”, continua a moldar as decisões médicas. Além disso, se atualmente existe um amplo consenso de que não existem “raças humanas”, múltiplas formas de racismo e discriminação permanecem bem vivas e têm impactos sobre a saúde e o bem-estar da população “não branca”.
Práticas discriminatórias do passado e do presente
No curso RAÇA, GÊNERO E MEDICINA: A DIFERENÇA COMO FERRAMENTA DA DISCRIMINAÇÃO, ofertado na Casa de Oswaldo Cruz, estudamos as intersecções entre “raça” e medicina em uma perspectiva histórica e comparativa tendo como base um conjunto de leituras sobre as consequências da racialização e do racismo na saúde. Debatemos consequências da discriminação racial – legado da escravidão, do colonialismo e do neocolonialismo – para as condições socioeconômicas e psicológicas da população negra.
Uma das perspectivas abordadas em sala vem do conceito de “Weathering”, que são os efeitos combinados e cumulativos do racismo na saúde. Nele incluem-se os efeitos de condições de vida, tratamento diferenciado de pacientes e o efeito indireto do estresse na saúde. Tais efeitos são muitas vezes negligenciados por especialistas, que ignoram as consequências da inscrição de discriminações nos corpos e atribuem piores resultados de saúde em populações “não brancas” à hereditariedade, ao “estilo de vida pouco saudável” ou a ambos.
Considerando-se também que indivíduos não brancos, especialmente de estratos sociais mais baixos, continuam a ter menos acesso à saúde e recebem cuidados de pior qualidade, discutimos como o racismo fez parte da cultura científica no Brasil e internacionalmente.
Um dos temas abordados a partir dessa perspectiva é a eugenia, que esteve frequentemente enredada na noção de inferioridade inata de grupos humanos específicos. Os eugenistas colocaram em evidência os perigos de “cruzamento” entre “raças” e algumas práticas eugênicas, como a esterilização seletiva, se dirigiram sobretudo aos grupos racializados e aos migrantes. Outra temática importante é a experimentação médica, que foi frequentemente conduzida em corpos racializados – não-brancos, pessoas escravizadas, pobres, pessoas nas colônias e em países em desenvolvimento. Tais experimentos foram muitas vezes apresentados como visando aumentar o “bem comum” e ajudar populações marginalizadas.
Com foco especial na saúde reprodutiva, abordamos o legado histórico que faz com que mulheres negras sejam hoje as maiores vítimas de violência obstétrica. Mulheres não brancas tendem a ter gestações de maior risco. Alguns profissionais de saúde atribuem muitas vezes essa diferença ao desconhecimento das gestantes a um comportamento (supostamente) desviante por parte delas. Isso se reflete também em taxas mais altas de mortalidade materna e mais complicações durante o parto e pós-parto para mulheres negras do que mulheres brancas de classe social e nível educacional semelhantes.
São dados cruéis que evidenciam a imprescindibilidade da integração de variáveis como “raça”/etnia e gênero nas reflexões sobre saúde e doença e a relevância da história para a compreensão e desnaturalização dos processos de racialização e da ordem de gênero que os embasam.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
GONZALEZ, Lélia. RACISMO E SEXISMO NA CULTURA BRASILEIRA. In: Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/7395422/mod_resource/content/1/GONZALES%2C%20L%C3%A9lia%20-%20Racismo_e_Sexismo_na_Cultura_Brasileira%20%281%29.pdf
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