Em 18 de maio é celebrado o Dia Nacional da Luta Antimanicomial, marco das mobilizações pela Reforma Psiquiátrica Brasileira e pelo fim dos hospícios no país. Arquivo do médico, que é um dos protagonistas dessa luta, está disponível para consulta na Casa de Oswaldo Cruz.
“4 de janeiro de 1920. Estou no hospício (…). Tiram-nos a roupa e dão-nos uma outra, só capaz de cobrir a nudez (…). Deram-me uma caneca de mate e, logo em seguida, ainda dia claro, atiraram-me sobre um colchão de capim com uma manta pobre, muito conhecida de toda a nossa pobreza e miséria (…). De mim para mim, tenho certeza que não sou louco; mas devido ao álcool, misturado com toda espécie de apreensões que as dificuldades de minha vida material, há seis anos, me assoberbam, de quando em quando dou sinais de loucura: deliro”. Afonso Henriques de Lima Barreto, “Diário do Hospício (Apontamentos)” textos reunidos no romance inacabado O Cemitério dos Vivosi.
Lima Barreto (1881-1922), assim como centenas de brasileiros acometidos por transtornos mentais à época, foi internado no Hospício Nacional de Alienadosii, um casarão na Praia Vermelha, Rio de Janeiro, entre 25 de dezembro de 1919 e 2 de fevereiro de 1920. No “Diário” memorialístico, o genial jornalista e romancista carioca fez ‘apontamentos’ sobre seu confinamento naquela que seria uma das muitas instituições encarceradoras de indivíduos considerados, à luz da medicina de então, “loucos”.
País onde milhares de pessoas são afastadas anualmente da vida laboraliii e social por transtornos semelhantes aos sofridos por Lima Barreto, o Brasil celebra, em 18 de maio, o Dia Nacional da Luta Antimanicomial. A data é símbolo de movimentos protagonizados por profissionais de saúde e entidades da sociedade civil pela extinção dos degradantes hospícios e do modelo manicomial em voga na saúde pública.
Iniciado nos anos 1970, os movimentos reivindicavam o fim dos manicômios e a substituição de camisas-de-força, eletrochoques, encarceramentos compulsórios e condições de trabalho precárias por condutas atentas aos direitos das pessoas com transtornos mentais. Mais que efeméride, o 18 de maio é fruto de ações que promoveram abordagens inovadoras na atenção psicossocial e na assistência à saúde mental, que resultaram na Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB).
Instituída como política nacional por lei em 2001iv, a Reforma, reconhecida internacionalmente, representou o fechamento gradual dos manicômios e hospícios e a criação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS)v. Entre inúmeras inovações, inseriu o cuidado humanizado e inclusivo a pessoas em sofrimento psíquico no Sistema Único de Saúde (SUS), em âmbito federal, estadual e municipal, por meio de inúmeros dispositivos de atenção à saúde mental.
David Capistrano e a luta antimanicomial
Um dos marcos de toda essa transformação foi a intervenção na Casa de Saúde Anchieta, a “Casa dos Horrores”, como era conhecida popularmente, comandada pelo médico sanitarista David Capistrano da Costa Filho (1948-2000). Na época da intervenção na Anchieta, David Capistrano era Secretário de Saúde e Higiene da Prefeitura de Santos, São Paulo, cargo que ocupou entre 1989 e 1992.

O médico sanitarista David Capistrano. Foto: Departamento de Arquivo e Documentação (DAD) da Casa de Oswaldo Cruz.
Além do protagonismo nos movimentos pela Reforma Sanitária, Reforma Psiquiátrica e formulação do SUS, Capistrano foi um dos criadores e diretores do Centro Brasileiro de Estudos em Saúde, o Cebes, e da revista Saúde em Debate. Nascido no Recife, fez medicina na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde atuou na militância do movimento estudantil universitário. Ao longo de sua vida profissional, ocupou várias secretarias municipais de saúde do Estado de São Paulo e chegou a ser prefeito de Santos.

David Capistrano (centro da foto) no encontro de campanha eleitoral para Prefeitura de Santos. Foto: Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz.
Quando secretário de saúde de Bauru, São Paulo, Capistrano realizou um congresso nacional que ficou reconhecido como um marco do movimento pela RPB. O ‘congresso de Bauru’ transformou uma mobilização iniciada por técnicos, o Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental (MTSM), em “crítica ao saber epistemológico e às instituições psiquiátricas”vi. Do congresso de Bauru surgiu o lema ‘por uma sociedade sem manicômios’, até hoje um símbolo dessa ruptura, e o Dia Nacional da Luta Manicomial, que passou a ser comemorado, anualmente, em 18 de maio.
No arquivo de Capistrano, sob a guarda da Casa de Oswaldo Cruz, é possível ter acesso a documentos textuais da vida pessoal e institucional do médico, além de vídeos com depoimentos sobre o encerramento das atividades da Casa de Saúde Anchieta, entre outros.
Em número especial da revista Saúde em Debate, publicado logo após a morte de Caspistrano, em 2000, o sanitarista Paulo Amarante, presidente de honra da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), pesquisador sênior do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS) da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz) e do Centro de Estudos Estratégicos (CEE/Fiocruz), rememora a intervenção na Anchieta e o papel de médico no episódio que veio a ser reconhecido como marco da desconstrução do modelo psiquiátrico manicomial no Brasil.

David Capistrano com delegação cubana na inauguração do Hospital Ernesto Che Guevara. Foto: Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz.
Segundo ele, quando Capistrano assumiu a secretaria de saúde de Santos a convite da prefeita Telma de Souza, a clínica Anchieta, hospital psiquiátrico de influentes médicos paulistas, era palco de casos de violência e mortes de pacientes psiquiátricos. “Os processos e as comissões de inquéritos abertos tinham sempre os mesmos destinos: as gavetas ou as velhas recomendações de mudanças cosméticas na instituição”, detalha. “Com David, porém, a história teria desfecho bastante diferente. Em seu lugar surgiria a mais vigorosa e radical transformação no modelo psiquiátrico: Núcleos de Atenção Psicossocial (Naps), cooperativas de trabalho, projetos culturais (tais como a Rádio e a TV TamTam, até hoje ativas)”vii.
De acordo com Amarante, em um de seus inúmeros artigos sobre o processo de crítica à psiquiatrização da loucura iniciado com o movimento da Reforma, a RSB introduziu a “desinstitucionalização” e a compreensão do “lugar social de loucura e da diferença”. Tal movimento significou uma profunda mudança nas bases conceituais da psiquiatria, que vai substituir o olhar para o paciente como objeto de estudos e os manicômios como laboratórios de observação da “alienação mental”, por uma nova concepção para a loucura e a diferença.
A Reforma resultou, portanto, de um longo processo de mobilizações pautadas na reintrodução do indivíduo no território por meio de atividades econômicas e culturais, a fim de que a “loucura” saísse dos hospitais para ocupar as cidades. No Arquivo Histórico da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz é possível saber mais sobre essa história e a atuação de David Capistrano. Para agendar consulta aos documentos, ligue (21) 2126-3492 ou envie e-mail para dad.consulta@fiocruz.br:
Fundo David Capistrano da Costa Filho
Contém documentos sobre sua vida pessoal e gestão institucional.
https://basearch.coc.fiocruz.br/index.php/david-capistrano
Luta Antimanicomial
Contém as seguintes produções audiovisuais:
“Casa de Saúde Anchieta, entrevista com os pacientes, Santos, 03/05/1989” – visita de inspeção retratando as condições precárias de funcionamento e atendimento aos internos, entrevista com os pacientes;
“Intervenção Casa de Saúde Anchieta”, 17/05/1989;
“Projeto Tam Tam nas emissoras de televisão” – compilado de reportagens veiculadas nos canais de televisão sobre o Projeto, que consistiu no tratamento humanizado e integração dos pacientes de saúde mental à sociedade, implementado após a intervenção municipal da Casa de Saúde Anchieta;
“Manifestação Popular Pró-Anchieta”.
Projetos de pesquisa
“Os movimentos sociais na reforma da psiquiatria no Brasil” (produção 2003-2020)
Reúne 10 depoimentos orais coletados para pesquisa em nível de doutorado stricto sensu de Fernando Sobhie Diaz, com lideranças de usuários e familiares da Reforma Psiquiátrica sobre suas histórias de vida, sua entrada no campo da saúde mental e militância dos movimentos sociais.
“Movimento da Reforma Psiquiátrica no Brasil – história e memória (produção 1998-2003)
Os depoimentos de historiadores, cientistas sociais, psicólogos ou enfermeiros são parte de um projeto de pesquisa maior, intitulado “Memória da Psiquiatria no Brasil”, coordenado por Paulo Amarante, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca e pesquisador do LAPS – Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial.
O objetivo de constituir este acervo de entrevistas foi registrar aspectos diferenciados da Reforma Psiquiátrica Brasileira por meio de alguns de seus expoentes mais importantes, que atuavam em diferentes instituições de saúde mental.
O depoimento de Lia Riedel é temático sobre a atuação de Gustavo Riedel, seu pai. Esse grupo de médicos teve ativa participação no citado movimento quando tem início o processo de desinstitucionalização das instituições psiquiátricas no Brasil, com várias experiências de transformação da assistência em saúde mental, como a implantação dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps). As entrevistas abordam sua história de vida e atuação profissional com foco na reforma psiquiátrica.
Conteúdos sobre a história da psiquiatria também estão presentes em obras do pesquisador do OHS José Roberto Franco Reis. Ele analisou as práticas de intervenção psiquiátrica vigentes no Brasil da segunda metade do século XIX até começo do século XX, relatadas na obra “O alienista”, de Machado de Assis. Esta análise pode ser acessada no artigo “O mentecapto de Itaguaí, história, loucura e saber psiquiátrico: diálogos historiográficos em torno de “O alienista” de Machado de Assis”, datado de 2016. O historiador também é um dos organizadores do livro “Pensar a loucura: trilhas literárias, culturais, históricas”, da Editora Fiocruz, que reúne 13 artigos de áreas como História, Saúde, Letras, Psicologia, História da Arte e Sociologia.
Notas:
i LIMA BARRETO, Afonso Henriques de. O cemitério dos vivos. Memórias. Prefácio de Eugênio Gomes. São Paulo: Editora Brasiliense, 1956, p.p.33-34.
ii A instituição foi inaugurada como Hospício de Pedro II durante o Império, em 1852; foi renomeada Hospício Nacional de Alienados (HNA) com a Proclamação da República (Decreto n. 142-A, de 11/01/1890); na reforma da Assistência de 1911, ganhou o nome de Hospital Nacional de Alienados (Decreto 8.834). A partir de 1927, em nova reforma, passou a chamar-se Hospital Nacional de Psicopatas (Decreto 5.148). Em 1937 se tornou Hospital Psychiátrico (Lei n° 378 de 13 de Janeiro, 1937). Fonte: Relatório parcial do projeto de pesquisa “Do Hospício de Pedro II ao Hospital Nacional dos Alienados: 100 anos de Histórias (1841-1944)”, coordenado por Cristina Facchinetti, pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, entre 2015 e 2018. Disponível em relatorio-hna-extensão-de-prazo-2021-v3.pdf
iii Saúde mental: afastamentos dobram em dez anos e chegam a 440 mil | Agência Brasil
iv Em 2 de setembro de 1989 o deputado Paulo Delgado apresenta o Projeto de Lei 3.657/89, que dispôs sobre a extinção progressiva dos manicômios e sua substituição por outros recursos assistenciais e regulamenta a internação psiquiátrica compulsória. A Lei 10.216/2001 foi promulgada em 6 de abril de 2001. Disponível em Laps – Linha do Tempo – Apresentação do Projeto de Lei 3657/89 de Paulo Delgado que previa a extinção dos manicômios no Brasil
v Oficializada em 2011, a RAPS tem como pontos de atenção à saúde mental as Unidades Básicas de Saúde/Estratégia de Saúde da Família (UBS/ESF), os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), as Unidades de Acolhimento (UA), os Serviços Residências Terapêuticos (SRT), o Programa de Volta para Casa (PVC), as Unidades de Pronto Atendimento (UA), SAMU, Hospitais Gerais e Centros de Convivência e Cultura. Disponível em Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) — Ministério da Saúde
vi Amarante, P., “David e os manicômios”. Saúde em Debate, V.24 nº 56. Rio de Janeiro, p. 17-18; 2000.
vii Amarante, P., “David e os manicômios”. Saúde em Debate, V.24 nº 56. Rio de Janeiro, p. 17-18; 2000.
Como citar este texto
D’AVILA, Cristiane; FARIAS, Glauce. David Capistrano e o fim dos manicômios. Site do Observatório História e Saúde – COC/Fiocruz, 2025. Disponível em: <https://ohs.coc.fiocruz.br/posts_ohs/david-capistrano-e-o-fim-dos-manicomios/>. Acesso em: XX de xxx. de 20XX.
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