BLOG

Entrevista

Por uma política de comunicação pública para o SUS

19/09/2023

Entrevista: Rogério Lannes Rocha

Por Cristiane d’Avila

 

Compartilhe

Na entrevista concedida ao Observatório História e Saúde para celebrar os 33 anos do Sistema Único de Saúde (SUS), instituído em 19 de setembro de 1990 com a promulgação da Lei 8.080/1990, Rogério Lannes Rocha, editor-chefe e coordenador do Programa Radis de Comunicação e Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), rememorou sua trajetória profissional e falou sobre sua participação na 17a Conferência Nacional de Saúde (CNS), realizada em julho deste ano, em Brasília, com o tema “Garantir Direitos, defender o SUS, a Vida e a Democracia – Amanhã vai ser outro dia!”.

A trajetória profissional do jornalista Rogério Lannes na Fiocruz confunde-se com o elo estabelecido entre comunicação e saúde na instituição, a partir dos anos 1990. Para além de representar a articulação de dois campos numa mesma perspectiva, ‘comunicação e saúde’, essa interseção deriva de lutas históricas em curso no Brasil desde a realização da 8ª Conferência Nacional de Saúde (CNS), em 1986. Quando a Constituição de 1988 estabeleceu a saúde como direito de todos e dever do Estado, selou-se o início de um processo – do qual Lannes é testemunha e protagonista – em que a comunicação construída a partir do diálogo e da participação social vem se efetivando como direito inerente ao direito à saúde.

“Eu entrei na Radis em 1987. A 8ª Conferência tinha acontecido havia seis meses e estávamos começando a nos preparar para cobrir a Assembleia Nacional Constituinte. Foram anos muito intensos, de acompanhamento das plenárias e dos movimentos de saúde. Havia o que chamamos de sociedade civil organizada no seu modelo clássico, ou seja, sindicatos, associações, conselhos – incluindo os de categorias profissionais, como os de medicina. É difícil imaginar isso hoje, com o avanço dos governos neoliberais nas últimas décadas”, lembra Lannes, que é doutor em Informação e Comunicação em Saúde pelo Programa de Pós-graduação do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (ICICT/Fiocruz). Em 2023, ele estreou na 17ª CNS como delegado da 2a Conferência Livre de Comunicação e Saúde, evento realizado no primeiro semestre do ano com a participação de centenas de comunicadores de todo o Brasil.

Na longa conversa que tivemos, o jornalista resumiu a trajetória da comunicação e saúde nas conferências nacionais de saúde: na 12a (2003), foi incluída como eixo do relatório final; na 15a (2015), auge da crise política que avassalou o Brasil, saiu como moção formulada em encontros promovidos pelo ICICT; em 2023, na 17a, alcançou uma posição considerada por Lannes um divisor de águas, ao fundamentar a proposta de construção de uma Política de Comunicação Pública do SUS, encampada como resolução pelo Conselho Nacional de Saúde. “Dá para comemorar e achar que chegou, do ponto de vista de deliberação e acolhimento, no lugar que a gente queria”.

Rogério Lannes discursa como delegado na 17a Conferência Nacional de Saúde, realizada em julho, em Brasília.

Fonte: Revista Radis; foto: Eduardo de Oliveira

Em 2003 o eixo Informação e Comunicação foi incluído no relatório final da 12ª Conferência Nacional de Saúde. Como se deu esse processo?

Na 12ª fui relator de síntese do eixo do Direito à Saúde e acompanhei menos os debates da comunicação, informação e saúde. Naquele momento a comunicação era entendida na Conferência como difusão, divulgação e a informação como sistemas de informação em saúde, informática e acesso a dados. Na Fiocruz já havia um grupo de pessoas problematizando a comunicação, o direito à informação: na Radis, na VideoSaúde, no Canal Saúde, nos cursos de especialização em comunicação e saúde do ICICT e no GT [Comunicação e Saúde] da Abrasco [Associação Brasileira de Saúde Coletiva]. Havia também redes que estavam pensando a comunicação como fazia a Pastoral da Criança, sensibilizados para a saúde da mulher, da criança, para a multiplicação dos temas da saúde, mas ainda numa chave normatizadora.

E em 2015 foi aprovada, na 15a CNS, uma moção que define o direito à comunicação como essencial para o direito à saúde.

Na 15ª foi organizada, a partir principalmente do ICICT, a aproximação de pessoas que pensam a comunicação em saúde de maneira diferente de como ela é estudada na graduação e praticada nas assessorias de comunicação. Havia o sentido da democratização da comunicação e da defesa do direito à comunicação, buscar o fim do oligopólio da grande mídia, fazer uma regulação maior da radiodifusão – que é uma concessão pública tratada como questão privada. Como essa discussão não se traduziu em propostas dentro dos grupos, que é o que vale em última instância, ela foi sintetizada numa moção e passou a constar do documento da conferência. Na 8ª CNS tinha havido um questionamento sobre publicidade de medicamentos, mas eram questões pontuais que não dialogavam com esse pensamento.

Nesse meio tempo, em 2016 a Fiocruz aprovou sua Política de Comunicação incluindo o conceito de comunicação pública, de direito à comunicação compreendendo a comunicação como elemento estruturante de todas as ações da Fundação e não apenas como instrumento de divulgação de ações institucionais.

Exatamente. Após dois anos de debates, a política introduziu pela primeira vez, a comunicação pública em texto oficial da Fiocruz. A política atualizava um plano integrado de comunicação, informação e informática de 2002, que defendia o direito à comunicação, tema que não se confunde com o direito ao acesso à informação, do sujeito como receptor.

A Política de 2016 colocava o direito à comunicação como indissociável ao direito à saúde, ou seja, não se conquista, assegura e amplia o direito à saúde sem o direito à comunicação. Em termos práticos, o que passou a ser defendido foi um certo sentido de comunicação pública, conceito que está sempre em disputa: no Brasil, diferentemente da nossa visão, há quem entenda comunicação pública como a comunicação dos órgãos públicos e até mesmo a de empresas e corporações orientadas por interesses de mercado, mas dirigidas ao público em geral.

Já o conceito presente na Política é o da comunicação pública feita no modelo dialógico, descentralizada, com a diversidade presente e muitas vozes. Não há o dono da voz como o único que fala, digamos assim. Pela primeira vez na Fiocruz distinguiu-se o que é comunicação pública tensionando a comunicação institucional, normalmente dedicada à assessoria de imprensa ou à prestação de contas, de forma a acolher outras vozes, mesmo institucionais, e não se deixar levar pelo marketing dos dirigentes e da instituição.

Você considera que essas diretrizes da Política de Comunicação da Fiocruz subsidiaram a resposta da instituição à pandemia?

Bom, todo mundo foi atropelado pela pandemia, mas quase intuitivamente as ações acabaram espelhando a Política de Comunicação. Atuaram os observatórios no âmbito da informação, as assessorias de comunicação das unidades e da presidência, houve o protagonismo da assessoria de comunicação e dos perfis da Fiocruz nas redes, do Portal Fiocruz, da Agência [Fiocruz de Notícias]. A Fiocruz reforçou seu lugar de uma voz em disputa, e em disputa com o governo, expressando o que seria o consenso científico e a conduta diante da pandemia.

Na Radis, por exemplo, já em fevereiro [de 2020] editamos uma revista do mês seguinte, que mostrava na capa uma pessoa com máscara. A partir de março, antes mesmo das revistas impressas ficarem prontas passamos a publicar as matérias no site e nas redes sociais. Isso expressou a urgência que mobilizou todos os processos de comunicação. Na minha opinião e na da maioria das pessoas desse campo, o protagonismo da comunicação na Fiocruz foi tão grande quanto o da produção de vacinas e da pesquisa.

E houve o trabalho da Cooperação Social da Fiocruz com os comunicadores de periferias e favelas.

Exatamente, o Se Liga no Corona. Quando promoveu a aproximação com os comunicadores populares, a cooperação social implantou políticas de comunicação que eram o nosso “sonho de consumo”, ou seja, feitas não só por quem é jornalista ou está nas assessorias.

No país inteiro havia coletivos com ativistas das periferias e favelas, comunicadores que atuavam em coletivos como o Papo Reto, do conjunto de favelas do Alemão. Aí houve uma inflexão: era um novo discurso, produzido pelos comunicadores populares, completamente diferente do discurso normativo da saúde. Além da comunicação nas redes eles usaram estratégias analógicas, com cartazes nos bares, nos postes, pessoas em bicicletas e motos com megafone passando informação às comunidades. Outro tipo de comunicação, com outra linguagem e dentro da lógica deles. Esse aprendizado e essa valorização da voz do outro como voz que pode comunicar melhor. Eu me empolgo com isso.

“Há a expectativa de compreensão do direito à comunicação, de estruturas que sejam máquinas de ouvir, e não máquinas de falar. Tenho esperança nessas formas coletivas, não muito hierarquizadas, de organização social”.

Você participou ativamente da 2ª Conferência Livre de Comunicação e Saúde e foi, pela primeira vez, delegado de uma CNS, a 17ª, realizada em julho último. Como foi essa CNLC e o que a diferenciou da anterior?

A 1ª Conferência Nacional Livre de Comunicação em Saúde, em 2017, foi uma iniciativa da assessoria de comunicação do Conselho Nacional de Saúde, para defender o SUS, porque estávamos em um contexto de retrocesso. No governo [do presidente Michel] Temer o Conselho era ignorado pelo Ministério da Saúde, que era anti SUS. A mídia era anti SUS. Houve então a ideia de construir um contradiscurso de defesa do SUS e a Fiocruz incorporou-se a esse processo, acrescentando a sua visão de comunicação e saúde. Mas a conferência não tinha propostas, delegados, ela foi livre, avulsa no tempo, não estava relacionada a uma conferência nacional e expressava dois tipos de visão, a de defesa do SUS e uma visão dialógica, de comunicação pública, de direito.

A segunda [2ª Conferência Livre de Comunicação e Saúde]  começou a ser organizada por redes de assessores de Brasília e de outros estados, muitos já mobilizados por terem participado de cursos de especialização de comunicação e saúde do ICICT ou organizados pela Fiocruz Brasília. A riqueza é que foi um processo dinâmico, sem donos, com muita abertura e generosidade, sem querer impor um pensamento único. Desse processo resultaram quatro diretrizes e 18 propostas e, como principal proposta, a construção de uma política nacional de comunicação e saúde conforme o conceito dialógico de comunicação pública, de comunicação não governamental, não privada, de presença de vozes, de respeito e de escuta.

Essa proposta foi inserida nas Resoluções 715 e 719 do Conselho Nacional de Saúde, que propõe a inclusão da Política de Comunicação Pública do SUS no Plano Nacional de Saúde.

Isso aí. Na verdade, a gente pode considerar que foi dado o salto que sempre se quis, porque na 12ª [CNS] a ideia ficou como uma aspiração, na 15a não entrou nas resoluções, e na 17ª foi aprovada e encampada pelo Conselho [Nacional de Saúde]. Então é para comemorar porque chegamos, do ponto de vista de deliberação e acolhimento, no lugar que queríamos. Falta agora o Ministério [da Saúde] acolher a proposta, porque tem coisas que estão no plano e não acontecem.

Conselho Nacional de Saúde

Resolução Nº 719, de 17 de agosto de 2023

Proposta: 49 – Estruturar Política Nacional de Comunicação Pública do Sistema Único de Saúde, consolidando-a como política de Estado, e compondo o Plano Nacional de Saúde.

Como ela vai ser construída? Uma política de comunicação do SUS vai tentar desconstruir essa imagem das filas, de algo que não funciona bem, o que de certa forma é como opera a comunicação institucional. Como será executada essa comunicação pública, dialógica?

A comunicação, como eu enxergo, é um lugar de disputa e não necessariamente de consenso. Num jornal, numa comunicação institucional, em qualquer processo de comunicação ou mesmo quando se pensa construir uma política de comunicação existe sempre uma disputa entre as vozes que ali estão presentes. Na [construção da Política de Comunicação] Fiocruz predominou a visão dialógica do direito a ouvir, a falar e ser ouvido. Quando a gente construiu o texto, na Conferência Livre, a disputa ocorreu e saiu com esse viés.

Como ela será construída, se centralizada no Ministério da Saúde ou no Conselho Nacional de Saúde, faz diferença. Eu prefiro que seja com predomínio do Conselho Nacional de Saúde, que não seja atribuição de uma assessoria de comunicação do Ministério nem de uma empresa, já que as assessorias hoje em dia são povoadas de empresas que fazem esse serviço. Eu acho que ela tem que continuar sendo formulada de forma colegiada, coletiva e com representações. Não é uma construção de técnicos, de especialistas.

“Esse processo coletivo da conferência, se não continuar na formulação, execução e avaliação da política [de Comunicação Pública do SUS] será abduzido pela tradição, e a tradição não é de comunicação pública e não é de comunicação dialógica”.

Para isso os próprios comunicadores têm que entender o SUS, não é?

Até mesmo conhecer, porque há um desconhecimento generalizado. As pessoas das assessorias muitas vezes “caem de paraquedas”, não tem servidores de carreira e mesmo se houver, tem que haver gente de fora para arejar esse pensamento, para não pensar a partir do umbigo da comunicação institucional.

Esse processo coletivo da conferência, se não continuar na formulação, execução e avaliação da política [de Comunicação Pública do SUS], será abduzido pela tradição, e a tradição não é de comunicação pública nem de comunicação dialógica.

Trata-se de uma disputa de pessoas interessadas no SUS, na comunicação pública e é preciso que seja bem aberta, que haja muitas consultas, que haja tempo, que não seja feita às pressas, mas que não seja abandonada. Uma política como essa será muito mais bem apropriada e executada nas esferas dos conselhos de saúde nacional, estadual e municipal, do que nas secretarias do Ministério.

Pelo que observo há décadas, essa política será impulsionada muito mais pelo processo de participação social do que pelo processo de evolução ou sensibilização dentro das esferas de comunicação. Então não será a partir dos núcleos de comunicação que vai virar realidade, mas sim por um processo de democracia participativa e de participação social.

“A tendência hoje em dia é a tecnocracia, no sentido de que os técnicos fazem, eles ‘sabem melhor’ e não ouvem ninguém. Depois eles chamam para comunicar”.

Mas como isso pode se dar, na prática?

Primeiro, de forma permeável à participação social na hora de formular. Porque é fácil fazer nos gabinetes, de modo tecnocrático. A tendência hoje em dia é a tecnocracia, no sentido de que são os técnicos que fazem porque “fazem melhor”, não ouvem ninguém e depois chamam para comunicar. Isso eu vejo até dentro da Fiocruz. É a tecnocracia, o poder dos especialistas para fazer e o desprezo por qualquer contribuição que venha de fora. É uma tradição muito forte, diferente do que foi construído na redemocratização a partir dos anos 1980, que é a base do SUS, o espírito do SUS, os valores do SUS. A permeabilidade e a inclusão de todos na participação e no controle social são essenciais. Os movimentos sociais também são muito impregnados dessa forma de enxergar a comunicação, que é falar para públicos e não com interlocutores. Falar e ser ouvido, mas não ouvir. Então essa conquista também precisa acontecer no âmbito dos movimentos sociais.

Eu acho que os coletivos de comunicação populares tendem a ter uma visão mais crítica, mais descentrada. Há jovens comunicadores populares, indígenas, encontrando novas linguagens, enquanto a comunicação tradicional está “batendo a cabeça” sem conseguir realizar. Há uma expectativa de compreensão do direito à comunicação, de estruturas que sejam máquinas de ouvir e não máquinas de falar. Tenho esperança nessas formas coletivas, não muito hierarquizadas, de organização social.

Referências:

ARAÚJO, Inesita Soares de; CARDOSO, Janine Miranda. Comunicação e Saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2007.

STEVANIM, Luiz Felipe; MURTINHO, Rodrigo. Direito à comunicação. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2021.

Leia também

One Comment

  1. Roseni Pinheiro 09/10/2023 at 18:50 - Reply

    Rogerio Lannes, sem duvidas um ator-autor de tantas lutas pelo direito à comunicação publica como Direito Humano à Saúde. Sob sua direção a Revista Radis influenciou de maneira decisiva minha escolha pela saúde, saude coletiva, o SUS, possibilitou a formação de gerações de intelectuais orgânicos como ele mesmo. Esse itinerarios deve nos consubstanciar como intelectuais ativistas de direitos e responsabilidade com e no SUS. Nós somos, porque somos “SUS”. Abraços dialogicos, fraternos e integrais

Leave A Comment