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Os laços de interesse entre a ditadura militar e a assistência farmacêutica no Brasil

Por Ramon Feliphe Souza

Membro do Observatório História e Saúde, doutor em História das Ciências e da Saúde, Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Rio de Janeiro (RJ), Brasil.

 

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Foto: Petter Illicciev / Fiocruz Imagens.

As primeiras políticas de assistência farmacêutica do Brasil geradas durante a ditadura militar são tema do artigo de Matheus Santana “A Central de Medicamentos e a assistência farmacêutica na ditadura civil-militar (1970-1974)”, publicado na Revista Ciência & Saúde Coletiva.

No texto, Santana explica que os militares recuperaram um programa proposto por João Goulart e lideraram o processo de consolidação de uma empresa pública voltada à produção de medicamentos para distribuição gratuita no país. O estudo analisou a dinâmica entre laboratórios militares e privados, demonstrando como demandas particulares de alguns dos grupos civis e militares, que participaram do golpe militar de 1964, impactaram o aparelho de Estado e as políticas públicas do período.

Segundo Santana – que escreveu uma tese sobre o tema – os militares atuaram na área de assistência farmacêutica com o objetivo de conter a ampliação do controle de laboratórios multinacionais nos setores industrial e comercial farmacêutico. Em período de Guerra Fria, o Brasil, alinhado à perspectiva ocidental de desenvolvimento liderada pelos Estados Unidos, passou a identificar o acesso à tecnologia farmacêutica como indicador de saúde e desenvolvimento econômico. Nessa perspectiva, a produção de antibióticos para fins comerciais e a melhoria das condições sanitárias eram identificadas como elementos cruciais para que um país se desenvolvesse.

Foi nessa conjuntura que, a partir da década de 1960, a sociedade brasileira viu ser intensificado, cada vez mais, o interesse de órgãos multilaterais na mobilização de recursos humanos, políticas e serviços de saúde e assistência médica atrelados à busca pelo desenvolvimento. Esse contexto incluía instituições tradicionais que propunham rumos para o desenvolvimento brasileiro no período, como a Igreja Católica, empresas farmacêuticas e outros organismos, como a Organização Pan-americana de Saúde (OPAS), a Organização dos Estados Americanos (OEA) e a Aliança Para o Progresso. No nível governamental, o otimismo e a busca por autonomia nacional no setor e a criação de uma estrutura industrial que suprisse a demanda interna de medicamentos haviam sido iniciados no governo de João Goulart, entre 1961 e 1964, deposto pelo golpe de estado de 1964.

O estudo de Santana demonstra como os próprios militares retomaram e ampliaram uma iniciativa que foi desenvolvida no INPS. Esse órgão foi criado por meio de uma reforma imposta pelo regime em 1966, que unificou os Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs) e a política previdenciária do país, submeteu esta ao controle do Ministério do Trabalho e Previdência e transferiu os serviços de assistência médica, hospitalar e farmacêutica que eram oferecidos pelos IAPs para o INPS. O autor descreve como a produção de medicamentos realizada em 1968 no laboratório do Hospital Federal de Bonsucesso, no Rio de Janeiro, na época gerido por Luiz Moura, vice-diretor do hospital do INPS, foi incorporada pelo Governo Federal e aplicada em laboratórios militares e civis, o que colaborou para o início das políticas de assistência farmacêutica no Brasil.

Segundo Santana, as iniciativas de Moura relacionadas à produção de medicamentos provocaram insatisfação em representantes da iniciativa privada e da classe médica. Mas, por outro lado, projetaram esse ator, que ganhou notoriedade no governo, sendo até mesmo convidado para os cargos de Secretário de Assistência Médica do INPS, em 1969, e presidente do mesmo órgão no ano seguinte. Um dos pontos altos dessa conjuntura foi a criação da Central de Medicamentos (CEME).

A CEME teve como objetivo garantir a produção, o controle de qualidade, a distribuição, a promoção, o financiamento de pesquisas, a modernização da cadeia produtiva e a racionalização da demanda nacional de medicamentos para uso humano. O estudo de Matheus Santana apresenta uma revisão bibliográfica sobre a origem da instituição e avança na medida em que revela o forte impacto dos interesses dos militares na consolidação dessa autarquia. Mas, por qual motivo o regime militar, conhecido pela abertura ao capital multinacional, optou por criar uma empresa estatal para implementar uma política de assistência farmacêutica no Brasil?

De acordo com Santana, a CEME foi organizada para mediar os interesses entre Estado e a iniciativa privada através da produção farmacêutica em laboratórios públicos. Luiz Moura foi demitido do cargo de presidente do INPS em 4 de agosto de 1970, após perseguições e sabotagens praticadas por representantes de empresas farmacêuticas contra sua gestão no órgão. Foi nesse contexto que a produção de medicamentos no laboratório do INPS sob sua liderança foi descontinuada, ainda no segundo semestre de 1970, sendo totalmente interrompida em dezembro do mesmo ano, sob a justificativa de transferência do seu maquinário para novas instalações. Essa conjuntura de sucateamento do laboratório compôs os motivos que levaram grupos militares a se posicionarem e atuarem em uma indústria tão estratégica como é o setor farmacêutico.

Ao analisar denúncias, como a apresentada na Câmara Federal pelo General Florim Coutinho, deputado federal pelo MDB, em discurso disponível no Diário do Congresso Nacional de 18 de maio de 1971, o estudo indica que os militares se posicionaram contra o sucateamento desse segmento, apelando à soberania do Estado. Esse posicionamento e postura culminou no processo que estruturou a autarquia estatal para esse fim, a CEME, em 25 de junho de 1971.

Após analisar mais de 200 atas de reuniões da CEME realizadas entre os anos 1972 e 1973, além de diversas edições de importantes jornais brasileiros no período, o estudo de Santana deixa evidente que a maior parte dos integrantes da Comissão Diretora da CEME eram de origem das Forças Armadas. Avaliando a atuação dos militares na construção das políticas de assistência farmacêutica no Brasil, o autor reitera que a autarquia era uma resposta à concentração de poder tecnológico e financeiro que grandes empresas farmacêuticas privadas acumularam entre o fim da Segunda Guerra Mundial e meados da década de 1970.

A estratégia institucional da CEME foi diversa, como a indicação de laboratórios públicos civis e militares para fins de produção de matérias-primas e especialidades farmacêuticas. A CEME também organizou remessas de medicamentos para Ações Cívico-Sociais realizadas por Exército e Marinha nas regiões Norte e Sul do país por meio do projeto Rondon, por exemplo.

A proximidade entre CEME e Forças Armadas perdurou até maio de 1974, quando o governo Geisel reformulou as bases da aliança entre o capital estatal, o capital privado nacional e o estrangeiro, ao lançar sua agenda para o desenvolvimento brasileiro, o II Plano Nacional de Desenvolvimento. A década seguinte, afirma o autor, seria marcada por um declínio da CEME também devido às mudanças nas políticas de saúde trazidas pelo Sistema Nacional de Saúde, de 1975, em que o Ministério da Saúde assumiu papel determinante na coordenação das ações de saúde pública, vigilância epidemiológica, controle sanitário e promoção da saúde em todo o território nacional. A extinção definitiva da autarquia ocorreu no ano de 1997.

O referido estudo é importante para a história da saúde brasileira, pois aprofunda reflexões sobre as interfaces entre a área da saúde, a assistência farmacêutica e a ditadura militar, que se estendeu de 1964 a 1985. O estudo expõe as contradições desse período ao revelar que esse projeto modernizador das políticas de assistência farmacêutica possuiu caráter autoritário, uma vez que não compôs um movimento que visava atender as demandas sanitárias ou assistenciais da população brasileira. Ao contrário, fez parte de um conjunto de intervenções organizadas pelo Estado brasileiro, a fim de promover o comércio e a manutenção das relações sociais de produção que garantiam a estabilidade do modelo capitalista no país.

Na atualidade, quando completamos 60 anos do golpe, é fundamental entendermos as mais variadas dimensões que permearam os 21 anos da ditadura militar no Brasil. A análise desse período, marcado por disputas e negociações, tem potencial para ampliar a compressão sobre o processo de consolidação da saúde como direito, que teve seu auge nos âmbitos da redemocratização, a partir da constituição outorgada em 1988.

Referências Bibliográficas

SANTANA, M. S. A Central de Medicamentos e a assistência farmacêutica na ditadura civil-militar (1970-1974). Cien Saúde Colet [periódico na internet] (2024/Mar). [Citado em 02/05/2024]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/a-central-de-medicamentos-e-a-assistencia-farmaceutica-na-ditadura-civilmilitar-19701974/19143?id=19143.

SANTANA, M. S. Central de medicamentos (CEME): políticas de assistência farmacêutica no Brasil da ditadura civil-militar. Tese (Doutorado em História das Ciências e da Saúde) – Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2022.

Como citar este texto

SOUZA, Ramon Feliphe. Os laços de interesse entre a ditadura militar e a assistência farmacêutica no Brasil. . Site do Observatório História e Saúde – COC/Fiocruz, 2024. Disponível em: <https://ohs.coc.fiocruz.br/posts_ohs/os-lacos-de-interesse-entre-a-ditadura-militar-e-a-assistencia-farmaceutica-no-brasil/>. Acesso em: XX de xxx. de 20XX.

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