O processo de formulação e especialmente de implementação de uma política nacional para a Atenção Primária à Saúde no Brasil foi sempre marcado por imensos desafios, de todas as ordens. Nesse percurso, que está próximo de completar 20 anos, se considerarmos a primeira Política Nacional de Atenção Básica (PNAB, 2006), a introdução de mudanças e mesmo de rupturas institucionais nem sempre representaram avanços ou, no mínimo, suscitaram controvérsias entre diversos atores do campo, à exemplo da formulação da vigente PNAB (2017).
Recentemente, em mais um capítulo de mudanças introduzidas pelo Ministério da Saúde, foi publicada a portaria Nº 635, que coloca algumas mudanças importantes na Política Nacional de Atenção Básica no país. Ao criar um incentivo financeiro federal para implantação, custeio e desempenho para as modalidades de equipes Multiprofissionais na Atenção Primária à Saúde, em boa medida, a portaria, em seus 24 artigos, redefine a política nacional tal como ela vinha sendo transformada nos últimos anos. Vejamos.
Para que tenhamos o real significado do seu valor histórico, convém espreitarmos esse instrumento administrativo à luz do processo político o qual tem atravessado e constituído a APS em nosso país. A formulação daquela que é reconhecida, formalmente, como a primeira Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), em 2006, se deu tanto como parte dos esforços para se produzir respostas aos problemas médico-sanitários das populações, em um movimento que reforçava a implantação do SUS, quanto representou um avanço institucional que procurava superar a proposição de uma APS seletiva, em favor de uma APS dita abrangente1.
A rigor, desde o contexto de formulação do SUS, os diferentes governos brasileiros foram pautados por uma lógica reconhecidamente neoliberal, que, no terreno da saúde pública, se alinhava com uma APS seletiva. Tal orientação governamental, no entanto, foi sempre contrabalançada por perspectivas que valorizavam a saúde como um bem público e um direito social. Para estas, no entanto, os princípios que se consagrariam na implantação do SUS, formalizados no texto das chamadas Leis Orgânicas da Saúde (LOS), só seriam garantidos por intermédio de uma série de políticas e investimentos públicos, inclusive com a vigência de uma APS abrangente (Aguiar, 2003; Lavras, 2011). Se vê, portanto, que o debate acerca da APS não se resumia aos enunciados favoráveis e restritivos à vigência de uma política. A questão que se colocava era de outra ordem: afinal, de qual APS estamos falando?
A partir de 1994, por intermédio do Programa de Saúde da Família (PSF), o agente comunitário de saúde, no modelo idealizado pelo PACS, chegaria aos grandes centros urbanos e regiões metropolitanas do país (Sousa, 2003). Conforme discutimos em obra recente sobre a história da APS no país, por se tratar de um projeto que implicaria mudanças na gestão da saúde dos estados, o processo de implementação da política foi atravessado por importantes tensões políticas (Paiva, Pires-Alves, 2021).
Neste mesmo ano, o Ministério da Saúde publica o documento “Normas e Diretrizes” (Brasil/MS, 1994), texto em que a Gerência Nacional do PACS encaminha aos estados e municípios normas e diretrizes capazes de orientar e garantir o que seria uma uniformidade na implantação do Programa num país marcado por tantas diferenças sociais, econômicas e institucionais. Seu principal objetivo foi incorporar ao Sistema Único de Saúde agentes comunitários de saúde, profissionalizados em auxiliares de enfermagem, para desenvolver ações básicas de saúde; identificar os fatores determinantes do processo saúde/doença; desencadear ações de promoção de saúde e prevenção de doença; funcionar como elo de ligação entre a população e os serviços de saúde, contribuindo, assim, com a comunidade no processo de aprender e ensinar a cuidar da sua própria saúde (Brasil/MS, 1994: p. 7).
Com intuito de compreender a situação de implantação do PSF no país, em julho de 1999, o Ministério sistematizou uma “Pesquisa de avaliação da Implantação e Funcionamento do Programa de Saúde da Família”. Seus resultados apontam para um processo de implantação vigoroso. Todas as secretarias estaduais de saúde do país, àquela altura, contavam com uma equipe técnica responsável pela coordenação local do PSF. Apenas em três estados federativos a coordenação do PACS e do PSF não se encontravam já unificadas (Brasil/MS/CAB, 2000: p. 16).
Em que pesem as inúmeras dificuldades também sinalizadas, a este estudo outros se juntam (Trad, Bastos, 1998; Macinko, Guanais FC, Souza, 2006; Facchini et al, 2006; Almeida, Giovanella, 2008), conferindo uma inegável robustez de resultados acerca da performance positiva do Programa em termos nacionais e locais. Em termos acadêmicos, o PSF passou a se configurar, então, como um caso de sucesso na formulação e implementação de uma política de saúde. No entanto, com a implantação e expansão do programa, antigos desafios intersetoriais, sobretudo na relação entre a saúde e educação, ganharam também um novo capítulo. A carência de profissionais de saúde, sobretudo de nível superior, somava-se a outro tradicional problema: a fixação de profissionais no interior e nas regiões menos abastadas, bem como a adequação qualitativa da formação profissional às necessidades do sistema de saúde (Gil, 2005; Cotta et al, 2006).
A descentralização e a capacidade de implantação e condução de políticas de base municipal, sem dúvida, ganharam outro patamar a partir da implantação, em 1998, do Piso de Atenção Básica (PAB). Ele garantiu recursos federais para cada município brasileiro em função de um cálculo que passou a considerar a população. Se, de um lado, representou a garantia de recursos financeiros; de outro, representou, também, responsabilidade por parte do gestor local na implantação de iniciativas no campo da Atenção Primária. A prioridade dada à APS é, assim, por si, um dado digno de nota. Mais do que uma prioridade formal, expressa nos discursos oficiais, o Ministério da Saúde tomava providências para que os recursos repassados, de fato, fossem empregados no desenvolvimento de ações compatíveis com o campo da APS. Para tal, no ano seguinte, expediu um Manual para a Organização da Atenção Básica (Brasil/MS, 1999). Um texto elaborado por núcleos técnicos do Ministério, mas que contava também com a colaboração do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS) e do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (CONASEMS).
O Manual conceitua Atenção Básica, define responsabilidades dos municípios no que concerne a esta modalidade de atenção; elenca ações, atividades, resultados e impactos esperados das ações definidas; e, por fim, traz orientações quanto ao repasse dos recursos financeiros que compõem o PAB, bem como os mecanismos de acompanhamento e controle (Brasil/MS, 1999: p. 7). A rigor, dada sua robustez e detalhamento normativo, o Manual define, avant la lettre, uma política para Atenção Primária à Saúde no Brasil.
Os estudiosos que se debruçaram sobre este processo de fortalecimento da APS no país reconhecem a importância do PAB e das subsequentes orientações vindas do Ministério da Saúde, dos diferentes órgãos de assessoramento, de fóruns de discussão e deliberação técnica e política e também da academia como fundamentais para a inegável relevância política e conformação de consenso técnico acerca do papel da APS no processo de construção do SUS (Marques, Mendes, 2003; Souza et al, 2007).
No início dos anos 2000, a partir do recém criado Departamento de Atenção Básica no Ministério da Saúde, à época, sob a gestão do ministro José Serra, seremos testemunhas de um gradual processo de expansão da Estratégia Saúde da família. A partir deste período, intensificando-se na gestão de Humberto Costa, ocorre não apenas uma maior expansão do PSF no país, mas também uma gradual reconfiguração da política. Nessa época, a partir de algumas experiências municipais de ampliação das equipes de saúde da família, a iniciativa do Núcleo de Apoio à Saúde da Família, o NASF2, começou a ser formulada.
Ambientes acadêmicos, mas também espaços ocupados por técnicos e gestores da saúde se lançavam em apoio à expansão da APS, sobretudo em sua modalidade saúde da família. Neste cenário, o processo de expansão e consolidação da APS/ESF no território nacional passou também a contar com recursos vultosos provenientes do Banco Mundial, que permitiram a construção do Projeto Expansão e Consolidação da Saúde da Família, o PROESF. A concepção do projeto se inicia, ainda, na gestão tucana de José Serra, mantendo-se como projeto prioritário na gestão petista de Humberto Costa. Seu propósito foi oferecer sustentabilidade aos municípios com populações acima de 1 milhão de habitantes. A expansão em municípios pequenos e médios, até aquele momento, tinha se processado com relativo grau de sucesso, com o PROESF lançava-se um novo desafio: oferecer saúde da família à capitais e áreas metropolitanas. (Morosini, Fonseca, Lima, 2018, Paiva, Pires-Alves, 2021).
A implementação, a partir de 2006, da primeira Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), com todas as dificuldades já até aqui parcialmente consideradas, abriu uma fase promissora para a Atenção Primária à Saúde no Brasil. Amplia-se o consenso técnico e político acerca do papel da APS na organização das instituições e na reorganização do modelo de atenção à saúde. A sua contribuição para o processo de implementação institucional do SUS pode ser medida pela sua capacidade de “produzir saúde”, entendida como um conjunto de ações com foco na cura e reabilitação da saúde, na prevenção e promoção de saúde e no acompanhamento de grupos considerados mais vulneráveis (Trad, Bastos, 1998; Macinko, Guanais FC, Souza, 2006; Facchini et al, 2006; Almeida, Giovanella, 2008).
Nos últimos 6 anos, esse processo – que jamais foi desprovido de contradições – passa a apresentar dificuldades adicionais importantes. Podemos sinalizar como partes desse cenário de maiores desafios para a APS, pelo menos para aquela dita abrangente, a vigência da PNAB-2017, a crise do Programa Mais Médicos, a criação da Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (ADPS) e, por fim, a implementação do Previne Brasil. Sem entrar nas importantes especificidades de cada uma dessas iniciativas, podemos considerar que, no seu conjunto, elas esvaziam o sentido público e universal não só da APS, mas do conjunto do sistema de saúde. Assim, a já desafiante rota de desenvolvimento institucional da APS no país parecia dar uma visível guinada em direção a concepções outras que não conversavam com uma visão abrangente e universal.
É neste novo quadro político institucional – que entre outras coisas se estimulou uma compreensão e tratamento segmentado da clientela do sistema de saúde -, que seremos testemunhas do esvaziamento da Estratégia Saúde da Família, como política para a implantação da APS e para o fortalecimento do SUS. A concepção de trabalho multiprofissional igualmente passou a ser frontalmente desafiada com a possibilidade de financiamento de outras modalidades de APS, que não ESF e, sobretudo, com a ausência de financiamento federal ao NASF. A crise na APS e no SUS, portanto, era e é profunda, uma vez que assistimos à formulação e implementação de políticas que reorientavam o papel e o alcance da APS.
É sob este prisma histórico que a portaria 635, de 22 de maio de 2023, merece ser observada. Ao introduzir incentivo financeiro federal para a implantação e custeio para equipes Multiprofissionais na Atenção Primária à Saúde, o chamado eMulti, podemos dizer que, aparentemente, retomamos a rota de fortalecimento da APS como uma política abrangente, organizada a partir do trabalho de equipes multiprofissionais e com foco na família? Ainda que possam pairar dúvidas antigas, quanto à carga horária permitida para os médicos ou quanto ao papel dos indicadores de desempenho das equipes para a gestão ou mesmo acerca das perspectivas colocadas para os ACS, há indícios de que, ao menos, retomamos discussões e iniciativas, por assim dizer, em um território doutrinário mais adequado. Assim, podemos considerar que o eMulti, ainda que sob nova roupagem, poderá dar vida à proposta do combalido NASF e, com outras iniciativas que se fazem necessárias, retomar a trajetória de construção institucional de uma APS forte, aquela que nos interessa. Por fim, convém destacar algumas inovações, como a inclusão de novas especialidades médicas às equipes, à exemplo de cardiologistas, endocrinologistas, infectologistas e outras, bem como o atendimento remoto de forma assistida. Compreendemos que essas iniciativas ampliam a resolutividade da Atenção Primária à Saúde (vide portaria abaixo). Seguimos acompanhando e lutando por uma APS e um SUS mais forte!
Notas:
1 Ao defenderem uma concepção de APS baseada na formulação de políticas e programas voltados para objetivos específicos e sempre relativos a grupos em situação de pobreza, os defensores de uma APS seletiva abririam uma frente de disputa com relação ao projeto desenhado em Alma-Ata, que considerava uma concepção de APS mais abrangente e estruturante para a organização dos sistemas de saúde. As tensões que envolveram tais disputas produziram consequências institucionais importantes no cenário específico brasileiro. Conforme argumenta Giovanella (2018:1), a adoção da expressão “atenção básica à saúde”, em contraposição ao uso internacionalmente consagrado de “atenção primária à saúde”, no emprego corrente das lideranças do Movimento Sanitário Brasileiro, se relacionaria com uma diferenciação de natureza ideológica no que se refere ao reducionismo presente na proposta de uma Atenção Primária Seletiva. A rigor, as pretensões, os objetivos e o alcance imaginados para a reforma da saúde brasileira não seriam compatíveis com uma concepção seletiva de cesta restrita e focalizada das ações de saúde, concepção que, antes de tudo, não se alinhava à orientação do direito à saúde.
2 O NASF consiste em um aparato institucional com equipes multiprofissionais que atuam de forma integrada com as equipes de Saúde da Família. Tal atuação integrada permite, nos termos da política, realizar discussões de casos clínicos, atendimento compartilhado entre profissionais nas unidades de saúde e nos domicílios; e a construção conjunta de projetos terapêuticos. Essas ações de saúde também podem ser intersetoriais, com foco prioritário nas ações de prevenção e promoção da saúde (Brasil/MS, portaria 2488/2011)
Referências:
AGUIAR, Raphael Augusto Teixeira. A construção internacional do conceito de atenção primária à saúde (APS) e sua influência na emergência e consolidação do sistema único de saúde no Brasil [Dissertação de Mestrado]. Belo Horizonte: Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais; 2003
ALMEIDA, Patty Fidelis de; GIOVANELLA, Ligia. Avaliação em Atenção Básica à Saúde no Brasil: mapeamento e análise das pesquisas realizadas e/ou financiadas pelo Ministério da Saúde entre os anos de 2000 e 2006. Cad. Saúde Pública [online]. 2008, vol.24, n.8 [cited 2020-07-02], pp.1727-1742
BRASIL/MS. Manual para a organização da Atenção Básica. Brasília-DF: Ministério da Saúde, 1999.
BRASIL/MS. Normas e Diretrizes. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 1994.
Brasil/MS. PORTARIA Nº 2488, DE 21 DE OUTUBRO DE 2011. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica, para a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS).
BRASIL/MS/CAB. Avaliação da implantação e funcionamento do Programa de Saúde da Família – PSF. Brasília-DF: Ministério da Saúde/Secretaria de Assistência à Saúde/Coordenação de Atenção Básica, 2000
FACCHINI, Luiz Augusto et al. Desempenho do PSF no Sul e no Nordeste do Brasil: avaliação institucional e epidemiológica da Atenção Básica à Saúde. Ciênc. saúde coletiva [online]. 2006, vol.11, n.3
GIOVANELLA, Lígia. Atenção básica ou atenção primária à saúde? Cad. Saúde Pública [online]. 2018, vol.34, n.8
LAVRAS, Carmen. Atenção primária à saúde e a organização de redes regionais de atenção à saúde no Brasil. Saude soc. [online]. 2011, vol.20, n.4
MACINKO, James; GUANAIS, Fátima Marinho de Souza. Evaluation of the impact of the Family Health Program on infant mortality in Brazil, 1990–2002Journal of Epidemiology & Community Health 2006;60:13-19
MARQUES, Rosa Mari; MENDES, Áquilas. Atenção Básica e Programa de Saúde da Família (PSF): novos rumos para a política de saúde e seu financiamento? Ciênc. saúde coletiva [online]. 2003, vol.8, n.2
MOROSINI, Márcia valéria Guimarães; FONSECA, Angélica Ferreira; LIMA, Lucina Dias de. Política Nacional de Atenção Básica 2017: retrocessos e riscos para o Sistema Único de Saúde. Saúde debate 42 (116) Jan-Mar 2018
PAIVA, Carlos Henrique A.; PIRES-ALVES, Fernando. Atenção Primária à Saúde: uma história brasileira. São Paulo: Ed. Hucitec, 2021.
SOUSA, Maria de Fátima de. Agentes comunitários de saúde: choque de povo. In: Agentes comunitários de saúde: choque de povo. 2003
SOUZA, Maria De Fátima Marinho De; MACINKO, James, ALENCAR, Airlane Pereira; MALTA, Deborah Carvalho; MORAIS NETO, Otaliba Libânio De. Reductions In Firearm-Related Mortality And Hospitalizations In Brazil After Gun Control. HEALTH AFFAIRS. VOL. 26, NO. 2, março de 2007: 575-584.
TRAD, Leny Alves Bonfim; BASTOS, Ana Cecília de Sousa. O impacto sócio-cultural do Programa de Saúde da Família (PSF): uma proposta de avaliação. Cad. Saúde Pública [online]. 1998, vol.14, n.2
Acesse o texto da portaria: https://www.in.gov.br/web/dou/-/portaria-gm/ms-n-635-de-22-de-maio-de-2023-484773799
Conheça mais sobre a história da Atenção Primária à Saúde no Brasil: https://lojahucitec.com.br/produto/atencao-primaria-a-saude-uma-historia-brasileira-carlos-henrique-assuncao-paiva-fernando-pires-alves/
Conheça nossas fontes de informação sobre Atenção Primária à Saúde (documentos, entrevistas, publicações): https://ohs.coc.fiocruz.br/fontes-de-informacao/#fonte01
Como citar este texto
PAIVA, Carlos Henrique Assunção. Novos ventos para a Atenção Primária brasileira? Site do Observatório História e Saúde – COC/Fiocruz, 2023. Disponível em: https://ohs.coc.fiocruz.br/posts_ohs/novos-ventos-para-a-atencao-primaria-brasileira/. Acesso em: XX de xxx. de 20XX.
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