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Entrevista

Mayara Santos: pesquisadora baiana analisa história da presença negra nas faculdades de Medicina

23/05/2024

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Mayara Priscilla de Jesus dos Santos é historiadora, graduada pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), e desde o mestrado vem estudando a trajetória de mulheres e homens negros na Medicina. Sua dissertação de mestrado, defendida no Programa de Pós-Graduação em História da UFBA, traz como título “Maria Odília Teixeira: a primeira médica negra da Faculdade de Medicina da Bahia (1884-1937)” e foi apresentada em uma dezena de eventos, programas de tevê e lives. Cursando atualmente o doutorado em História Social na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Santos desenvolve a pesquisa “Os homens de cor na Faculdade de Medicina da Bahia (1808-1888)”, na qual realiza uma prosopografia (um estudo de trajetória/biografia coletiva) de médicos negros formados na faculdade baiana.


Mayara Santos foi entrevistada pelos pesquisadores do OHS Eliza Toledo e Luiz Alves. Confira abaixo:

Equipe OHS: O que te mobilizou a pesquisar a trajetória de Maria Odília Teixeira?

MS: A primeira força que mobilizou essa pesquisa foi o silêncio, pois ao constatar que não havia um trabalho profundo sobre a trajetória, vida ou obra de Maria Odília, senti que alguém precisava fazer isso, e essa pessoa deveria ser eu mesma. No decorrer da pesquisa, fui me dando conta da dimensão política que o trabalho tinha, e isso somou-se à minha própria trajetória enquanto estudante negra numa Universidade Federal. Foi muito importante observar a pesquisa numa perspectiva que não findasse nos muros da faculdade, já que ainda hoje a população negra se depara com muitos dos obstáculos que Maria Odília enfrentou, mais de um século atrás. Além disso, pensar que uma pesquisa sobre uma mulher tão singular, como Odília, poderia tornar-se uma potência e um incentivo a outras trajetórias no tempo presente, podendo também contribuir com a memória do povo negro do Brasil, foi essencial para embalar e dar fôlego a esse trabalho, que por vezes é solitário, laborioso e pouco glamouroso.

Maria Odília Teixeira, em sua formatura.

Equipe OHS: Qual o cotidiano da Faculdade de Medicina da Bahia na virada do século XIX para o XX? Como se dava a presença de mulheres e homens negros na escola médica?

MS: A presença negra na Faculdade de Medicina remonta à própria história da instituição, pois, embora pareça surpreendente, ainda nos anos iniciais é possível encontrar homens negros em seus quadros, como alunos e até mesmo professores. No entanto, ao aprofundarmos o nosso olhar, percebemos que essa presença foi em diversos momentos pontual, singular e por vezes espaçada. Até o momento, a pesquisa aponta que na primeira metade do século XIX vários homens conseguiram conquistar altos postos dentro da faculdade; já na segunda metade do século, o número cresce, ao passo que ocupar os melhores cargos já não parece tão fácil. Para as mulheres, essa possibilidade só foi possível no final do século, até porque antes disso elas estavam proibidas de acessar o ensino superior no Brasil. Assim, a participação feminina negra ocorre inicialmente com Maria Odília, que se formou em 1909. Um dado que chama a minha atenção é o hiato que se apresenta quando investigamos a partir do recorte de gênero, pois a segunda médica negra a se formar na Faculdade de Medicina da Bahia foi a sergipana Itala da Silva, somente em 1927. Isso nos mostra que, ao analisarmos a presença negra na medicina baiana com um olhar interseccional, é perceptível que a “escotilha” esteve ainda mais fechada para as mulheres negras.

Equipe OHS: Em seu doutorado, você avançou para uma análise coletiva da presença negra na medicina. Por que essa mudança de foco de uma trajetória individual para uma coletiva? Quais as implicações dessa mudança?

MS: Essa mudança se deve às possibilidades que o coletivo pode fornecer à pesquisa, pois além do alargamento do recorte cronológico, será possível nos aproximarmos de trajetórias que ainda não haviam sido estudadas. Assim, ao passo que poderemos entendê-las numa dimensão mais específica, o fator coletivo também poderá ser explorado, de forma que nosso intento é contribuir para os estudos que encampem as discussões sobre a medicina praticada por pessoas negras no Brasil.

Equipe OHS: Como você tem observado o papel dos entrelaçamentos de raça, gênero, classe, geração e outros marcadores de diferença na presença negra na medicina?

MS: A interseccionalidade, observando raça, classe, gênero, geração, e outros fatores, é essencial para esse estudo. Logo, são cernes importantíssimos para os problemas de pesquisa levantados para a tese; inclusive, orientando as balizas metodológicas e o nosso trabalho de pesquisa em campo. Sem dúvidas, as buscas por fontes e leituras bibliográficas levam em consideração que nosso olhar deve estar atento a todas as possibilidades que estes marcadores nos oferecem, sendo vitais para que possamos entender o todo, bem como as inúmeras especificidades que este estudo já encontrou. É impossível pensar nesse conjunto de médicos e médicas negras, sem nos atentarmos para as diferenças encontradas neste grupo heterogêneo. Acredito que, inclusive, esse é um dos maiores “trunfos” desta pesquisa: as diferenças.

Equipe OHS: Você tem atuado também na elaboração de produtos e atividades voltadas para a educação escolar e a divulgação da história para públicos mais amplos. Como você entende essa articulação entre a história e seus públicos?

MS: Entendo que essa articulação é necessária e de extrema importância para quem produz ciência, e deveria estar intimamente ligada à produção intelectual dos historiadores. Defendo que, sobretudo em tempos de crescente negacionismo, as melhores formas de enfrentarmos o reacionarismo e os retrocessos, em inúmeras frentes, são a publicização, transposição ou decodificação das nossas pesquisas. Assim, estamos oportunizando o debate público de temas que, somados, são de extrema relevância para toda a sociedade. É imprescindível que possamos fazer esse movimento junto a um público mais amplo, e que por vezes não tem acesso, não entende e/ou está completamente afastado do que é produzido nas universidades. Isso, inclusive, é uma grande oportunidade de mostrarmos o que os centros de estudos podem e devem oferecer a toda a população, não só trazendo as pessoas “comuns” para mais perto de nós, mas humanizando o nosso trabalho diante dessas pessoas.

Equipe OHS: Quais as conexões que você observa entre a presença negra na medicina da virada do século XIX para o XX e o perfil profissional da saúde hoje?

MS: É difícil fazer essas aproximações sem correr o risco de cometer um anacronismo histórico, ou seja, utilizar os conceitos e ideias de uma época para analisar os fatos de outro tempo. Mesmo correndo esse risco, observo que a medicina brasileira continua sendo elitista e branca. Digo isso por observar os dados consolidados sobre a entrada de pretos e pardos (negros) nos cursos de medicina no Brasil, que sem dúvida têm crescido, após importantes políticas públicas, mas que ainda mostram como a população negra segue sub-representada na medicina, em geral. Se utilizarmos a interseccionalidade, essa observação fica ainda mais gritante, pois é inegável o baixo número de profissionais femininas em algumas especialidades, bem como em cargos de chefia, no caso de médicos e médicas negras em geral. Assim, mesmo sendo a maioria da população brasileira, continuamos sendo a minoria numa profissão essencial e prestigiada como a medicina. Torço que os estudos que desenvolvemos, assim como outras contribuições possam, ao serem somados, demonstrar para o povo negro as trajetórias na medicina em nosso passado, e que esta profissão pode ser, sim, um sonho possível para nós.

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