Mulheres que tratam câncer de mama apresentam diferentes visões sobre a eficácia do tratamento, com viés religioso ou não; podem ter experiências de maior cuidado e proximidade dos entes familiares; e têm diferentes frustrações relativas à perda dos cabelos e das mamas, assim como aceitação dos novos corpos e identidades, e expectativas de retorno à estética anterior ao diagnóstico.
Os resultados são do artigo “Para além das classificações biomédicas: a experiência do câncer de mama no Brasil, 1990-2015”, publicado na revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos, volume 29, número 3. Os autores São Carlos Barradas (Centro de Estudos Sociais/Universidade de Coimbra), Luiz Antonio Teixeira (Casa de Oswaldo Cruz, Fiocruz) e Luiz Alves Araújo Neto (Casa de Oswaldo Cruz, Fiocruz).
O artigo é baseado nas narrativas de mulheres em tratamento de câncer de mama no Hospital do Câncer III (HC III), vinculado ao Instituto Nacional do Câncer José Alencar Gomes da Silva (Inca), no Rio de Janeiro, e explora três aspectos na experiência do adoecimento: a recepção do diagnóstico; a relação com a família; e o impacto da doença e do tratamento na identidade e nas percepções de si.
Metodologia
As entrevistas semiestruturadas foram realizadas com 15 mulheres em tratamento, todas na faixa etária de 25 a 75 anos, apresentando tumores localmente avançados com necessidade de quimioterapia e posterior mastectomia. Todas estavam em início de tratamento quando foram realizadas as entrevistas.
O método das entrevistas utilizado foi o McGill Illness Narrative Interview, ou Mini, um roteiro desenvolvido na Universidade McGill (Canadá) direcionado para estudos na área da psiquiatria transcultural, porém aplicado em outros contextos. A tradução para português e adaptação para o câncer de mama foram realizadas pela equipe de investigação do projeto “Avaliação do estado do conhecimento público sobre saúde e informação médica em Portugal”, desenvolvido no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra no início da década de 2010.
O Mini é composto por seis grupos de questões, também chamados de módulos, que visam a compreender: a percepção pessoal acerca do momento do adoecimento; concepções sobre o câncer a partir de experiências de terceiros ou do próprio passado; opiniões sobre por que contraiu a doença; além de opiniões acerca dos serviços médicos e resposta ao tratamento, fontes de informação e impacto na vida da pessoa doente. Na pesquisa, os autores explicam que o método permite grande liberdade discursiva às entrevistadas, além de valorizar a atenção ao detalhe para identificar os aspectos relevantes para cada uma na experiência do adoecimento. Cada entrevista tinha a duração média de 60 minutos, e foi gravada, transcrita e codificada pela equipe da pesquisa.
Embasamento teórico
Em seu embasamento teórico, a pesquisa considera o adoecimento um fenômeno individual e ao mesmo tempo coletivo, influenciando no convívio familiar e social em geral, principalmente se causado por condições crônicas. O câncer de mama carrega uma forte carga simbólica e emocional, inclusive em virtude das possíveis transformações no corpo e a relação das mesmas com o lugar da mulher na sociedade, como no aspecto da sexualidade.
O estudo leva em consideração o frequente itinerário do tratamento do câncer de mama: cirurgia para retirada do tumor e um posterior tratamento adjuvante, como quimioterapia, radioterapia ou hormonioterapia. É relevante, nesse tipo de câncer, os impactos sobre o corpo: a perda cirúrgica parcial ou total da mama e efeitos colaterais relacionados à quimioterapia, como a alopecia (queda de cabelo), problemas de pele e modificação no peso corporal.
A pesquisa reconhece, ainda, a atual dificuldade do sistema de saúde brasileiro em organizar estratégias de detecção precoce do câncer de mama. São as protagonistas desse processo mulheres de diferentes idades, segmentos socioeconômicos, níveis de escolaridade e histórias de vida.
Resultados
Os resultados da pesquisa não são unânimes em nenhum dos três aspectos pesquisados: a recepção do diagnóstico; a relação com a família; e o impacto da doença e do tratamento na identidade e nas percepções de si. As 15 mulheres entrevistadas expressaram posições e desejos diferentes nos pontos pesquisados, sendo alguns selecionados para o artigo em questão. Porém o ponto comum a todas as narrativas é a negociação em torno de nomenclaturas, procedimentos e conceitos próprios da biomedicina. Embora os estudos de medicina a respeito do corpo feminino tenham sido, por muito tempo, deterministas de que o adoecimento poderia excluir as pessoas adoecidas do convívio social e quebrar suas identidades, as narrativas demonstram uma capacidade de ressignificação do símbolo da doença e um realinhamento da identidade para a pessoa. É destacada, também, a dimensão coletiva dessa experiência, envolvendo principalmente a família.
O primeiro aspecto ressaltado pela pesquisa é relativo à recepção do diagnóstico: algumas entrevistadas demonstraram relativa tranquilidade em relação a esse momento. Uma das hipóteses da equipe sobre isso está relacionada a um maior esclarecimento da população quanto ao câncer de mama, resultado de campanhas educativas para detecção precoce. Outro ponto, inegável pois muito presente nos depoimentos, é a relação do momento do diagnóstico com a fé, que sustentou emocionalmente as mulheres de religiosidade declarada. Um terceiro aspecto considerado é o senso de autocontrole: com o diagnóstico, iniciam-se os procedimentos para o tratamento, inclusive de práticas religiosas para tentar alcançar a cura. No entanto, outras mulheres declararam ter sentido muito medo e tristeza no momento do diagnóstico.
O segundo aspecto da pesquisa é relativo à experiência familiar do adoecimento. Em diversas entrevistas, as pacientes relataram situações de aproximação com familiares após o conhecimento de sua condição, o que se tornou algo positivo em suas vidas, expressando ainda uma gratidão pelo cuidado recebido. Existe ainda um aspecto a respeito da mudança de aparência da mulher, em virtude da mastectomia ou efeitos da quimioterapia, como a perda de cabelo. As posições que as mulheres exprimiram sobre essas mudanças estavam, em vários casos, relacionadas ao que as pessoas próximas comentavam. Por último, houve relatos de espanto e medo da doença a partir de outras mulheres, o que demarca a experiência coletiva do adoecimento e pode afastar ou aproximar indivíduos.
Por fim, a pesquisa analisou como a doença e seu tratamento impactaram na percepção de cada mulher sobre si. Um dos destaques é que, para várias entrevistadas, a mudança física mais marcante não foi a perda da mama, mas sim dos cabelos. Fica nítida aqui a relevância do cabelo nas noções sociais de feminilidade, e também o medo do estigma. Neste caso, as mulheres sem cabelo seriam vistas como não sadias, o que pode dificultar o enfrentamento da doença. O isolamento, por medo do julgamento, é frequente, assim como o abandono por cônjuges. No entanto, para algumas das entrevistadas a perda do cabelo não foi um grande incômodo, ou foi apenas no início, sendo essa perspectiva mais frequente em mulheres mais velhas. As mais novas demonstraram interesse em restabelecer um padrão estético considerado mais atraente.
Mas a mastectomia não ficou de fora das entrevistas com as mulheres. Neste ponto, o artigo mostra um avanço da própria academia e dos profissionais da saúde: foi a partir dos anos 1960 que o bem-estar feminino começou a ser um dos focos de atuação, sendo o final do século XX marcado pela mudança de currículo na formação das Ciências da Saúde e pela incorporação de equipes multiprofissionais. As mulheres da pesquisa variaram em suas experiências declaradas com a mastectomia: houve preocupações quanto à sexualidade, à convivência familiar, à imagem pública, e até mesmo à pouca atenção a todos esses aspectos. Do mesmo modo, não foi unânime o desejo de reconstruir a mama, seja pelas consequências do novo procedimento, seja pela reorientação da identidade de cada uma.
A conclusão da pesquisa é que a experiência de adoecimento das mulheres entrevistadas foi construída a partir da interação entre a convivência familiar e a mobilização de diferentes significados culturais da doença e da feminilidade.