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A pandemia de Covid-19 terminou? Estudo avalia a Covid Longa

Ramon Feliphe Souza

Membro do Observatório História e Saúde, doutor em História das Ciências e da Saúde, Casa de Oswaldo Cruz/ Fiocruz. Rio de Janeiro (RJ), Brasil.

Resumo:

O artigo apresenta um estudo elaborado pela Rede Covid-19 Humanidades MCTI, do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRGS. Essa rede mantém parceria com o Observatório Hisória e Saúde da Casa Oswaldo Cruz (COC-Fiocruz), a partir da qual é desenvolvido o projeto intitulado “Entre a visibilidade e a invisibilidade: uma abordagem histórica e socioantropológica da Covid longa entre trabalhadores da saúde no Rio de Janeiro e em Porto Alegre” (Edital INOVA-FIOCRUZ).

Sessão de fisioterapia no Centro de Reabilitação Pós-Covid, em Niterói. Foto: Prefeitura de Niterói.

A pandemia de Covid-19 terminou?

No final de 2019, surgiram na China os primeiros casos da Covid-19, doença causada pelo novo corona vírus (SARS-CoV-2) que logo se espalhou pelo restante do mundo. Desse período até dezembro de 2023, os dados indicam um número estrondoso de 774 milhões de pessoas afetadas pelo vírus. No Brasil a sociedade assistiu a sistemática negligencia do governo federal em relação à pandemia e teve 11% do total de mortes no mundo pela doença. Mas, apesar do quadro dramático, observamos atualmente um progressivo desinteresse por parte da sociedade em discutir o tema, enquanto os efeitos da pandemia demonstram uma agenda inacabada para o nosso Sistema Único de Saúde.

Há um grande o número de pessoas que foram infectadas pelo vírus e que relatam sintomas imprevisíveis e persistentes, caracterizando uma entidade nosológica emergente pós-covid-19, que tem sido chamada de Covid Longa. Manifestando-se até 24 meses pós-infecção por SARS-CoV-2, segundo Ramos Jr (2024), a prevalência de Covid Longa em todo o mundo seria de quase 75 milhões de pessoas e, no Brasil, 4 milhões.  Entre as sequelas estão: fadiga crônica, perda cognitiva, depressão, ansiedade, dentre outros sintomas que levam à perda de qualidade de vida e de produtividade laboral. Além dos sintomas, a duração e os métodos utilizados para tratar as queixas das pessoas que relatam ser afetadas pela Covid Longa são diversos. Essa conjuntura dificulta a elaboração de um diagnóstico formal para essa entidade nosológica.

Nesse sentido, os relatos de pacientes ou de familiares das vítimas têm sido fundamentais para impulsionar o debate sobre a doença no cenário público. Exemplo disso é a Associação de Vítimas e Familiares de Vítimas da Covid-19 (AVICO) e o uso das redes sociais para chamar atenção para a Covid longa. Esse engajamento e mobilização desafia a percepção inicial de que a Covid-19 seria de curta duração.

Essa conjuntura também tem impulsionado diversas pesquisas, como é o caso do mais novo artigo de Jean Segata e Ilana Löwy intitulado “Covid Longa, a pandemia que não terminou” publicado na revista “Horizontes Antropológicos” (2024). O estudo resulta de pesquisas da Rede Covid-19 Humanidades MCTI, do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRGS. Essa rede mantém parceria com o Observatório História e Saúde da Casa Oswaldo Cruz (COC-Fiocruz), a partir da qual é desenvolvido o projeto intitulado “Entre a visibilidade e a invisibilidade: uma abordagem histórica e socioantropológica da covid longa entre trabalhadores da saúde no Rio de Janeiro e em Porto Alegre” (Edital INOVA-FIOCRUZ).

Reunindo análise bibliográfica e jornalística apuradas sobre o tema, além de relatos de pessoas acometidas pela Covid Longa, Segata e Löwy indicam a existência de uma “injustiça epistêmica”, isto é, quando a credibilidade dos pacientes é frequentemente questionada e seus sintomas são classificados como “difíceis”. A intenção do estudo não foi contestar o privilégio epistêmico dos profissionais, fundamentando no seu conhecimento especializado e superior, mas destacar uma negação sistemática da existência do conhecimento experimental do paciente, que merece ser reconhecido e respeitado. A seguir um relato de uma das entrevistadas:

Então, a gente não existe. Não existe covid longa pra eles. Nós somos invisíveis. Invisíveis. A gente continua doente e, se não continuarmos lutando, ninguém fará nada por nós.

(Carla, 44 anos, julho de 2023).

Assentado em relatos como este, o estudo discute sobre uma “doença que as pessoas têm que lutar para ter”. Essa perspectiva considera a doença como mais do que uma condição biológica, mas como uma experiência que se entrelaça com a vida e a história de uma pessoa. Visto que, embora não haja um diagnóstico formal para a Covid Longa, a doença segue remodelando rotinas, causando limitações físicas, distúrbios emocionais e, portanto, impactando a vida dessas pessoas. Ao destacar a experiência concreta de pessoas afetadas na busca de tratamento e cumprimento do seu direito à saúde, o estudo chama atenção para a necessidade de políticas de reconhecimento e de cuidado da doença. E, na ausência de sinais objetivos da Covid Longa, os autores insistem que as descrições dos pacientes e seus sintomas são uma fonte fundamental de informações sobre a nova condição.

O estudo indica que a maioria das pessoas que contaram suas histórias de Covid Longa na mídia tinham entre 25 e 55 anos, pertenciam à classe média, eram brancas e tinham educação superior. Por isso, considerando aspectos da realidade brasileira caracterizada por marcadores sociais da diferença, a escassez de narrativas publicadas sobre a Covid Longa por parte de trabalhadores, desempregados, indivíduos não brancos ou migrantes pode revelar dificuldades que essas pessoas enfrentam para acessar especialistas, receber tratamentos adequados, compartilhar suas experiências e tê-las validadas. Sobre esse aspecto, é nosso papel destacar que o racismo é um instrumento bem sucedido para manutenção dessa desigualdade e precisa ser enfrentado concomitantemente a elaboração de políticas de cuidado e enfrentamento aos efeitos diversos da epidemia. Não por acaso, a primeira vítima da epidemia de Covid-19 no país foi uma empregada doméstica negra de sessenta e três anos.

Por fim, o estudo explora como, para quem vive com a Covid Longa, assim como para os enlutados, que ainda lidam com as perdas e a reconstrução de suas vidas, a pandemia de covid-19 ainda não terminou. Demonstrando, assim, como dimensões políticas, científicas e sanitárias se cruzam indicando que o fim de uma epidemia, portanto, depende de muitos fatores, constituindo-se como um processo ao mesmo tempo social, político, biológico e cultural.

Referências Bibliográficas

RAMOS JR, Alberto Novaes. Desafios da COVID longa no Brasil: uma agenda inacabada para o Sistema Único de Saúde. Cadernos de Saúde Pública, v. 40, p. e00008724, 2024.

SEGATA, Jean; LÖWY, Ilana. Covid longa, a pandemia que não terminou. Horizontes Antropológicos, v. 30, p. e700601, 2024.

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