Nas últimas décadas, muito se tem discutido sobre a relação entre História e Saúde Pública. Um marco nesse debate é o clássico editorial de Elizabeth Fee e Theodore M. Brown no American Journal of Public Health, publicado em 1997. No texto, os autores afirmam que a pesquisa histórica, entre outras potencialidades, possibilita a avaliação de ações contemporâneas no campo da saúde a partir da apreciação de iniciativas passadas.
Estudos mais recentes renovaram essa perspectiva, reconhecendo a História como ferramenta que possibilita a tomada de decisões com base em uma perspectiva temporal alargada, que considere as determinações socioculturais e econômicas dos diferentes fenômenos da saúde e da doença. Por esse viés, é possível afirmar que a história da saúde brasileira, a partir da vigência do Sistema Único de Saúde, tem como horizonte a produção de subsídios ou orientações para as práticas profissionais e suas dinâmicas políticas e culturais. Quatro aspectos, em nossa leitura, compõem tal perspectiva.
Primeiro, a história da saúde nos permite ter uma noção contextual dos problemas da população brasileira e da estrutura sanitária; ambos, socialmente determinados, são resultados de contingências históricas específicas, devendo, portanto, ser compreendidos à luz das demandas e dos constrangimentos de toda ordem; segundo, a história da saúde nos fornece elementos para fazer uma análise crítica que discuta as práticas dos profissionais de saúde não somente como atos técnicos, mas como ações orientadas por visões políticas, ideológicas, culturais, mas também pessoais e morais; terceiro, a história da saúde nos dá a dimensão temporal das políticas de saúde que falam sobre o seu tempo, sobre a sociedade brasileira, suas características e seus desafios; quarto, mas não menos importante, a história, a partir de seus contingentes de atores, potencializa a criação e o reforço de identidades institucionais.
Nessa perspectiva, portanto, a história da saúde pode ultrapassar os limites de um conhecimento puramente erudito ou abstrato e se configurar como ferramenta analítica para a formulação e implementação de políticas públicas e para a construção e/ou o aperfeiçoamento de estratégias políticas e gerenciais adotadas. Pode também contribuir para que os diferentes profissionais, em suas ações diárias no âmbito dos serviços de saúde, reavaliem condutas e práticas já cristalizadas como hábitos na rotina dos serviços.
As linhas de pesquisa existentes no Observatório buscam cumprir as diretrizes acima observadas.
História da Atenção Primária à Saúde
Compreendida em nossos dias como uma política estruturante das ações e do próprio funcionamento do Sistema Único de Saúde, a APS tem uma trajetória que, até certo ponto, se confunde com o processo de reforma sanitária e com a própria formulação e implementação do SUS. Compreender, nesse sentido, sua dinâmica específica de formulação e implementação se apresenta como um convite para um exame das diferentes condições e atores que permitiram sua modelagem como política pública nacional.
Tais condições e atores, por sua vez, jamais operaram num vazio cognitivo e institucional. Pelo contrário. A presença de um rico repertório de ideias, de orientações normativas e doutrinárias e, por fim, de conhecimentos técnico-políticos permitiram, ao longo das últimas décadas, a configuração tanto de uma área de conhecimento quanto de uma arena de exercício de uma das políticas públicas mais significativas no contexto da implementação de um sistema único de saúde.
Seus desafios, contudo, não são pequenos. Entre estes, mencionando apenas alguns, podemos referir a organização dos serviços sob a forma de redes de atenção, sua distribuição e coordenação no território, a mobilização de recursos humanos e a qualidade do cuidado ofertado em unidades de saúde que têm como um dos seus pilares um modelo de atenção que considera a integralidade do cuidado.
Em boa medida, trata-se de questões com importante lastro histórico, representado em inúmeras ações, iniciativas e políticas, inclusive locais, que, ao longo do tempo, serviram de contexto para a construção de determinados consensos técnicos e, em menor escala, políticos acerca de conceitos, significados, orientações, ações e práticas da APS. Seus limites políticos e institucionais também se situam no terreno do trabalho em saúde, como uma região de questões específicas.
Debates e iniciativas que começaram sob o signo da formação médica, sobretudo a partir dos anos 1970, ganharia inegável amplitude com a formação de ´profissionais de saúde`, inclusive técnicos e auxiliares. Seu pano de fundo dizia respeito à necessidade de se ampliar a oferta de serviços de saúde para as populações menos assistidas e, assim, enfrentar os problemas de saúde mais prevalentes.
Não só a ampliação da quantidade de profissionais ganhou destaque nas preocupações dos sanitaristas, mas, em especial, o perfil destes e o exercício do trabalho foram ocupando crescente espaço nas agendas institucionais. Tais questões, cuja interface com a APS é visível e fundamental, foram objeto de importantes ações e políticas, que, em boa medida, a despeito dos avanços registrados, ainda vivenciam limites institucionais e políticos históricos.
Nessas e em outras situações, a abordagem histórica, mais do que a produção de memória acerca das soluções já empreendidas, pode levar em consideração as perguntas feitas pelas gerações de sanitaristas de períodos passados como uma forma para refletir sobre questões que foram e são fundamentais e assumiram certa condição de permanência, em temas como: o emprego dos recursos disponíveis; o acesso aos serviços de saúde; a organização da assistência à saúde mediante a mobilização dos recursos humanos e tecnológicos adequados. São questões que sobrevivem ao tempo e a militância contemporânea da APS, de alguma forma, também é herdeira daqueles desafios.
História da medicalização do parto
A hipermedicalização do parto e suas consequências são um problema público, extremamente atual no Brasil. A grande utilização da cesariana, a violência obstétrica, as críticas ao modelo intervencionista de parto e os posicionamentos da corporação médica em busca do monopólio das práticas relacionadas ao nascimento são exemplos desse problema.
Em sentido inverso, os movimentos pela humanização do parto e diferentes grupos de mulheres militam defesa da integridade corporal e psicológica no processo de parturição estando, cada vez mais, envolvidos em ações públicas para transformar esse modelo e vencer as dificuldades da assistência ao parto e nascimento.
Neste contexto, pensar historicamente a medicalização dos nascimentos faz-se necessário. Tal empreendimento transcende a tentação de atribuir a uma determinada categoria profissional a reponsabilidade pelo processo de criação e manutenção de um modelo intervencionista de assistência ao nascimento. Ou mesmo de se imaginar que o desenvolvimento dos conhecimentos médicos no campo da ginecologia e da obstetrícia capturaram os corpos femininos acabando com sua autonomia e diminuindo sua vitalidade.
Essas formas de pensar ingênuas, muito comum em diferentes categorias profissionais do campo da saúde, muitas vezes fazem vista curta às vantagens trazidas pelo desenvolvimento tecnológico, em especial as relacionadas à diminuição da mortalidade materna e neonatal. Em sentido diverso, normalmente opõem medicalização e humanização, sem levar em conta que esse primeiro conceito subjaz todo o contexto de nascimento e parto, estando presente também em iniciativas de humanização. Não é sem sentido que o movimento pela humanização há anos vem lutando pela minimização das intervenções no parto, tendo como bandeira a necessidade de seguir os ditames das melhores evidências científicas.
No âmbito desse vasto e complexo fenômeno, a perspectiva histórica traz importantes contribuições ao permitir a compreensão de como um grande conjunto de marcadores das formas de nascer na atualidade se relaciona a um processo histórico de ampliação da jurisdição médica no âmbito da saúde da mulher. Pensar os caminhos da medicalização do parto de forma histórica também significa ampliar o alcance da análise sobre os diversos grupos que disputam posições nos discursos e práticas sobre nascimento embasadas no conhecimento médico. É também compreender como disputas pontuais entre diferentes atores são frutos de longos processos históricos que relacionam medicina e sociedade em diferentes dinâmicas.
História das doenças crônicas não transmissíveis
Uma terceira vertente investigativa do OHS se dedica ao estudo da história das doenças crônicas não transmissíveis, especialmente o câncer, em suas conexões com o desenvolvimento da medicina e da saúde pública no Brasil ao longo do século XX.
Diferentemente de doenças transmissíveis epidêmicas e endêmicas, que possuíam maior apelo político e social, as doenças crônicas foram, por bastante tempo, consideradas condições atípicas da realidade brasileiras, questões de regiões civilizadas e industrializadas. Entretanto, na segunda metade do século XX, essas doenças gradativamente receberam maior atenção de grupos sociais específicos, como sociedades médicas e civis, e da saúde pública, principalmente através de um raciocínio que atribuía a maior incidência de doenças crônicas ao desenvolvimento do país.
A trajetória dos conhecimentos, das práticas e das políticas voltadas a essas doenças abre possibilidade para discussão sobre a complexa relação entre biomedicina e saúde pública. Trata-se de dois campos com vocações epistêmicas bastante distintas, constantemente contrapostas e fundamentais para a forma como a sociedade responde ao processo saúde-doença.
No caso do câncer, um aspecto marcante tem sido a incorporação de tecnologias e outras inovações biomédicas ao cotidiano das práticas de cuidado e às interpretações sociais elaboradas sobre a doença. Seja para o diagnóstico ou tratamento dos tumores, a tecnologia é apontada por grupos médicos como principal resposta, pelos usuários como grande expectativa, e pela saúde pública como desafio para a gestão e funcionamento do sistema.
Nesse processo, a incorporação de inovações não lida simplesmente com medidores de eficácia e custo-benefício, mas também com disputas profissionais, sistemas de crenças e ideologias, valores morais e posicionamentos políticos. Em diversas situações, como no caso da mamografia, as controvérsias acerca da incorporação tecnológica criam sistemas distintos de atenção à saúde, formulam enunciados conflitantes e criam cenários pouco favoráveis a políticas conectadas às situações específicas do território brasileiro.
Dessa maneira, a abordagem da História da Saúde possibilita investigar os meandros da relação entre biomedicina e saúde pública, tendo como posição fundamental a ideia de que tanto a inovação biomédica quanto a gestão da saúde são atividades socialmente situadas e negociadas coletivamente, longe do reducionismo técnico.
Discussões dessa natureza permitem explorar a tensão fundamental e incontornável aos sistemas de saúde contemporâneos, em que a demanda pela inovação tecnológica coloca, mesmo aos países mais ricos, constrangimentos e limitações importantes para o funcionamento do sistema de saúde. Conhecer e reconhecer esse fenômeno em um país marcado por profundas e brutais desigualdades sociais como o Brasil é fundamental para o planejamento e a tomada de decisões em saúde.
Como citar este texto
PAIVA, Carlos Henrique Assunção; REIS, José Roberto Franco; TEIXEIRA, Luiz Antonio. A História da Saúde como ferramenta para a compreensão do presente. Site do Observatório História e Saúde – COC/Fiocruz, 20XX. Disponível em: <https://ohs.coc.fiocruz.br/?post_type=posts_ohs&p=7292&preview=true>. Acesso em: XX de xxx. de 20XX.