Há coisas que não desaparecem; dentre elas está a violência. A aversão à violência não é algo característico da Idade Moderna. Ela é apenas proteica e, dependendo da constelação social, suas formas de manifestação se modificam.
Han, 2017, p. 17
A pobreza extrema na região da América Latina aumentou nos últimos anos como consequência do aprofundamento da crise sanitária da Covid-19. Nesse mesmo período, as violências cresceram em meio à pandemia, especialmente a violência de gênero.
No Brasil, entre os anos de 2020 e 2023 foram registradas as maiores taxas de feminicídios desde 2015, quando esse crime foi tipificado no país, em função, entre outros fatores, da ausência de políticas públicas voltadas ao combate às violências. As mulheres negras são as principais vítimas e representam cerca de 67% dos casos notificados (Cepal, 2021a, Bueno et. al., 2024).
As violências são expressão das desigualdades, das injustiças e exclusões sociais e do crescimento do discurso antigênero, em vários países dessa Região. Tal discurso questiona os direitos das mulheres e das comunidades LGBT e influencia as políticas governamentais, especialmente na área da saúde.
O Brasil lidera os assassinatos de mulheres trans no mundo e ocupa a sétima posição no ranking de feminicídios. Dados do Atlas da Violência indicam a urgência de fortalecer programas de proteção a essa população, após anos de desinvestimentos do governo anterior (Agência Brasil, 2023; Cerqueira, Bueno, 2023).
O cenário atual das violências, ao contrário de ser uma “encenação ostentatória”, como em outros momentos da história, se esconde envergonhado, não chama a atenção sobre si, contudo, repercute no cotidiano de famílias em processo de exclusão e em condições precárias de trabalho, moradia, saneamento e saúde. As violências se deslocam do caráter visível para o invisível, pois se escondem nas sutilezas de suas formas modernas, em geral não reconhecidas.
Determinar as causas das violências, seus aspectos estruturais e conjunturais, não é uma tarefa tranquila, dado que não se pode dissociar suas múltiplas manifestações de outros conceitos, como autonomia, conscientização, exclusão, pobreza e interações intersubjetivas. A dor é subjetiva e difícil de ser definida (Faria, Patiño, 2020).
Violências e dor
Na história da medicina, a dor é um indicativo de anormalidade e elo entre paciente e médico. Le Breton (1995) adverte, contudo, que a dor não é meramente fisiológica, mas carrega uma dimensão afetiva. Não há dor sem sofrimento. A dor é sentida e percebida por aqueles que sofrem. A dor penetra as experiências pessoais mediadas pela cultura e se transforma, segundo o autor, numa ferramenta para melhor se conhecer os momentos de sofrimento. A abordagem antropológica da experiência da dor em Le Breton é uma forma de escutar os “não ouvidos pela medicina”.
Vale ressaltar que, assim como os termos “saúde” e “doença” envolvem dimensões subjetivas e não apenas biológicas, científicas e objetivas, as violências são experiências subjetivas que não podem ser manifestadas integralmente por meio de palavras. No entanto, a pessoa que sofre um ato violento se utiliza de palavras para expressar seu sofrimento.
Profissionais das redes de atendimento às pessoas em situação de violências, por sua vez, também fazem uso de palavras para tentar significar as queixas. Nessa relação, surgem tensões entre a subjetividade das narrativas das vítimas e a objetividade dos significados atribuídos pelos profissionais, que orientam as intervenções para lidar com essas situações. Em muitos momentos, porém, eles não conseguem responder ao contexto do ciclo de violências em que a vítima está inserida, o que pode fragilizar o enfrentamento do problema, principalmente quando os profissionais não estão qualificados para o acolhimento (Badaró, Santos, Faria, 2024).
As conexões invisíveis e imperceptíveis das violências nas sociedades de risco, como as latino-americanas, transformam-se em sofrimento somente visíveis nos corpos das pessoas violentadas, sobretudo com características étnico-raciais e pertencentes a determinados territórios que configuram imobilidades e mobilidades, inclusões e exclusões. Tais violências afetam a saúde e a integridade psíquica, emocional e simbólica dessas populações.
Por outro lado, as desigualdades nas sociedades contemporâneas estão mais visíveis do que nunca e a crise sanitária causada pela pandemia pôs em evidência a necessidade de novas políticas públicas, além de novos pactos sociais e programas de proteção, o que House (1987) denomina de social support ou social structure, ou seja, a assistência disponível, o cuidado real e o grau em que uma pessoa está integrada em uma rede social.
As sociedades atuais se desoneram cada vez mais do “olhar o outro” como consequência do processo de globalização complexo, acelerado e excludente (Han, 2017). Em vários países da América Latina, os dados são alarmantes; cerca de um terço da população vive em situação de pobreza e mais de um décimo em situação de extrema pobreza.
As desigualdades e as violências afetam desproporcionalmente populações historicamente excluídas, a exemplo dos povos indígenas, das comunidades quilombolas e ribeirinhas e das populações pretas e pobres dos territórios de favela e periferias das grandes cidades (Cepal, 2021b; Oxfam Brasil, 2024).
Persistem, portanto, condições estruturais de disparidades no acesso aos serviços sociais e de saúde, uma vez que as iniquidades na América Latina não se limitam ao escopo das rendas, mas abarcam os sistemas de saúde fragmentados, o que reduz a cobertura da atenção primária (APS). Nesse contexto, os temas das desigualdades, das vulnerabilidades e das violências assumem grande importância para a Saúde Pública em função de sua magnitude e impacto social.
As agências internacionais como a Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) entendem as violências como problema de saúde pública mundial que atingem populações mais vulneráveis, afetam a saúde individual e coletiva, exigem a formulação de políticas específicas de proteção social e a organização de práticas intersetoriais. São caracterizadas, nos vários relatórios, como um problema que gera danos irreversíveis às pessoas, às famílias, às comunidades e, também, aos profissionais de saúde.
Partindo desse contexto, importa indagar quais os caminhos e os papéis assumidos pela Atenção Primária nos cuidados direcionados a essas populações. A atuação em rede (intrassetorial e intersetorial) passa a ser um tema central nos serviços de saúde, uma vez que as ações individuais não conseguem dar conta de problemas complexos.
Os profissionais que atuam na rede de atendimento às vítimas em situação de violências reconhecem que a complexidade do tema requer que as necessidades dos usuários sejam atendidas e que o enfrentamento venha acompanhado de intervenções educativas como possibilidade de (re)pensar a prática profissional na superação do ciclo de violências (Badaró, Santos, Faria, 2024).
As violências produzem também deformações nas identidades subjetivas, especialmente nas populações pobres, por meio do processo de criminalização da pobreza. Muitas vítimas de violências assumem a identidade que lhe é atribuída socialmente. Contudo, uma vez que as identidades subjetivas são construídas na relação com as culturas, o que está em jogo é a forma como as sociedades e governos lidam com as populações marginalizadas, com as “massas marginais” (Nun, 2001; Patiño, Faria, 2019). As violências constituem, portanto, um desafio para os gestores dos sistemas de saúde e, para além da criminalização, é necessário um esforço coletivo dos diversos órgãos que, de alguma maneira, estão envolvidos nessa dinâmica multifacetada.
Propostas de articulações entre redes institucionais e ações intersetoriais tornam-se formas privilegiadas de políticas públicas voltadas para a temática. A constituição de uma rede cooperativa deve alcançar resultados em situações complexas e acolher as pessoas que vivem em contextos de vulnerabilidades.
Nesse sentido, a intersetorialidade, dada sua visão integrada dos problemas, passa a ser entendida como um processo estruturador da construção de novas respostas para as políticas públicas, uma vez que envolve vários atores de diferentes setores, como saúde, educação, segurança pública, assistência e controle social (Couto et. al., 2018).
Cabe ressaltar que, por conta dos princípios organizativos da Atenção Primária, como territorialização, integralidade, assistência continuada e rede de serviços de saúde, existe maior possibilidade de prevenção de casos de violências, uma vez que ao oferecer cobertura e vínculo para as vítimas atendidas por uma rede organizada coletivamente, disposta a ouvir e estar atenda as comunicações verbais e não verbais, os profissionais constituem atores essenciais na detecção de contextos e territórios violentos.
O tema da atuação em rede possui ambiguidades em sua definição, não sendo possível, por vezes, separá-lo de outros conceitos, como transversalidade. Mesmo assim, há consenso no qual a abordagem intersetorial é entendida como um instrumento importante para as práticas coletivas e combate dos problemas sociais e de saúde, dada sua visão integrada do cuidado (Bronzo, 2007; Couto et. al., 2018).
Finalmente, pelo fato de a atenção primária constituir porta de entrada privilegiada para os casos de violências nos territórios e, portanto, estar mais próxima do cotidiano das pessoas, a APS desempenha papel fundamental na identificação das situações violentas, tanto para conduzir as primeiras abordagens, quanto no acesso às informações sobre os fluxos e serviços da rede que possam apoiar as vítimas e seus familiares. Contudo, ainda há grande dificuldade dos profissionais em identificar o tipo de violência e o contexto no qual a vítima está inserida.
Há necessidade de uma formação socialmente contextualizada e recursos adequados para o atendimento. A relevância do campo da saúde nessa discussão pode ser visibilizada ao se considerar o conceito de rede e a sua atuação na complexidade dos contextos sociais, instrumentalizando os profissionais para o enfrentamento de problemas reais das comunidades nos territórios.
Referências
Agência Brasil. Brasil é o país com mais mortes de pessoas trans no mundo, diz dossiê, 2023. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2023-01/brasil-e-o-pais-com-mais-mortes-de-pessoas-trans-no-mundo-diz-dossie.
Badaró, Maria Conceição Julião, Santos, Matheus, Faria, Lina. Tecendo redes intersetoriais no acolhimento às vítimas de violências na Atenção Primária à Saúde. Research, Society and Development, v. 13, n. 1, 2024.
Bronzo, Carla. Intersetorialidade como princípio e prática nas políticas públicas: reflexões a partir do tema do enfrentamento da pobreza In: XX Congresso do Centro Latinoamericano de Administración para el Desarrollo – CLAD 12, Anais, Santo Domingo: CLAD, 2007. p. 1-39
Cepal, Comisión Económica para América Latina y el Caribe. Panorama social de América Latina, 2020. Santiago: Cepal, 2021a. Disponível em: https://repositorio.cepal.g/bitstream/handle/11362/46687/8/S2100150_es.pdf.
Cepal, Comisión Económica para América Latina y el Caribe. O paradoxo da recuperação na América Latina e no Caribe: crescimento com persistentes problemas estruturais: desigualdade, pobreza, pouco investimento e baixa produtividade. Santiago: Cepal, 2021b. Disponível em: https://www.cepal.org/sites/default/files/publication/files/47043/S2100379_es.pdf.
Cerqueira, Daniel; Bueno, Samira. Atlas da violência 2023. Brasília: Ipea/FBSP, 2023. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/arquivos/artigos/9350-223443riatlasdaviolencia2023-final.pdf.
Couto, Vinicius Assis et al., Intersetorialidade e ações de combate à violência contra a mulher. Revista Estudos Femininos, v. 26, n. 2, 2018.
Bueno, Samira et al. Feminicídios em 2023. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2024. Disponível em: https://apidspace.universilab.com.br/server/api/core/bitstreams/eca3a94f-2981-488c-af29-572a73c8a9bf/content.
Faria, Lina; Patiño, Rafael Andrés. Violências, injustiças e sofrimento humano: o impacto das desigualdades sociais nas percepções de Martín-Baró, Ricoeur e Nietzsche. Cadernos IHU, v.18, 2020 p.1-28.
Han, Byung-Chul. Topologia da violência. Editora Vozes, 2017.
House, James S. Social support and social structure. Sociological Forum, v. 2, n. 1, 1987, p.135–146.
Le Breton, David. Anthropologie de la douleur, Paris, Métailié, 1995.
Nun, José. Marginalidad e exclusión social. Fondo de Cultura Econômica, 2001.
Oxfam Brasil. Desigualdades S.A, 2024. Disponível em: https://www.oxfam.org.br/forum-economico-de-davos/desigualdade-s-a/.
Patiño, Rafael, Faria, Lina. Práticas de exclusão social: reflexões teórico-epistemológicas em torno de um campo de estudos. Revista Colombiana de Ciencias Sociales, v. 10, n. 2, 2019, p. 426-444.
Como citar este texto
FARIA, Lina. Atenção Primária é fundamental na identificação de situações de violência nos territórios. Site do Observatório História e Saúde – COC/Fiocruz, 2024. Disponível em: https://ohs.coc.fiocruz.br/posts_ohs/atencao-primaria-e-fundamental-na-identificacao-das-situacoes-de-violencia-nos-territorios/.
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