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Entrevista

O Sertão Nu: Entrevista com Laila Pedrosa Silva sobre Infraestrutura, Colonização e Saúde Pública no Piauí (1910-1945)

12/07/2024

Ramón Souza entrevista Laila Pedrosa

 

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Fonte: O Problema Social e Econômico das Obras Contra as Sêcas. Relatório apresentado, em julho de 1933, ao Snr. Ministro da Viação e Obras Públicas, Dr. José Américo de Almeida, pelo engenheiro agrônomo Evaristo Leitão, 1937.

Conversei com a historiadora Laila Pedrosa Silva, membro do grupo de pesquisa História das Ciências e da Saúde (SANA) da Universidade Federal do Piauí (UFPI) sobre sua pesquisa de doutorado realizada na Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), intitulada Uma região impermeável ao progresso: secas, ferrovias e rodovias no Piauí (1910-1945).

No estudo, Laila demonstra, a partir de documentos dos acervos do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS) e do Arquivo Público do Estado do Piauí (APEPI), como as elites piauienses promoveram a ideia de ‘abandono’ e a imagem de isolamento do Piauí para justificar obras de infraestrutura em prol de seus próprios interesses. Isso resultou na inclusão do estado em projetos de modernização nacional, incluindo saneamento e combate à malária, nos quais a seca atuou como elemento central na relação com o governo federal.

 

RS: No século XX, o Piauí assistiu à realização de grandes obras de infraestrutura. Você poderia comentar sobre essas representações do Piauí?

A ideia de um suposto abandono do estado do Piauí pode ser observada desde a segunda metade do século XIX. No entanto, vai ser no século XX que tais discursos ganham destaque nos debates das elites locais que, a partir de uma retórica política, buscam mostrar as potencialidades da região a fim de superar a imagem que se tinha do estado, isto é, de um território que não apresentava tanta expressividade no conjunto da federação, atrasado, isolado, castigado pelas secas, pelas doenças e sem uma infraestrutura de transporte.

Este conjunto de discursos foi responsável pela construção de uma imagem da região como esquecida. Tal ideia foi resultado de formulações, ao longo da história, que visaram inserir o território no projeto de modernização nacional desenvolvido pelo Estado brasileiro.

Por isso, ao longo da pesquisa foi preciso confrontar visões pré-estabelecidas, a fim de entender a região para além dos estereótipos que perduram até os dias atuais, buscando compreender como se processou a elaboração desses signos que caracterizaram este espaço como “impermeável ao progresso”.

RS: Seu texto destaca a importância simbólica da seca na formação do estado do Piauí, mesmo que essa região não tenha sido tão severamente afetada quanto outras. Como esse processo ocorreu?

Fonte: O Problema Social e Econômico das Obras Contra as Sêcas. Relatório apresentado, em julho de 1933, ao Snr. Ministro da Viação e Obras Públicas, Dr. José Américo de Almeida, pelo engenheiro agrônomo Evaristo Leitão, 1937.

O Piauí teve um papel de destaque nos debates sobre as secas, mas não do mesmo modo das demais regiões do polígono, como o Ceará, o Rio Grande do Norte e a Paraíba, pois a dimensão do fenômeno, se comparado aos outros estados, era bem menor. No entanto, o território serviu como “zona de refúgio ou de passagem” para os retirantes que migravam fugindo da seca. Desse modo, foi cenário para a atuação da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS), que destinou investimentos para a implantação de alguns açudes, poços, estradas e colônias agrícolas, com o intuito de fixação dos sertanejos.

Indo ao encontro da ideia de abandono do poder central, que permeava o imaginário político local, as elites piauienses tiveram uma boa justificativa para reivindicar a realização de melhoramentos na infraestrutura do estado, já que, além dos efeitos da seca, que afetavam a economia e a população, tinham que lidar com o quadro de pobreza e miséria provocado pela migração de sertanejos dos estados vizinhos, que aumentava a população nas ruas e, consequentemente, a fome, a miséria e as doenças, pela escassez de alimentos, água e higiene.

Um exemplo disso, ocorreu na seca de 1919, que, em meio à crise provocada pela perda da lavoura e da criação de gado em decorrência do flagelo, as autoridades governamentais tiveram que lidar com as consequências da epidemia de gripe espanhola, agravada ainda mais pela chegada de retirantes cearenses, que sobrecarregou os hospitais e demandou mais cuidado e investimentos públicos.

Assim, o argumento central da tese é de que as secas foram elementos estruturantes e mediadores na relação do Piauí com o poder central, servindo de justificativa para a inserção do estado nos trechos de grandes obras públicas, ou seja, nos projetos de modernização nacional do período.

RS: A região serviu de espaço para a implementação das políticas de expansão da fronteira para o povoamento do território nacional, na perspectiva do que ficou conhecido como Marcha para o Oeste. Como foi esse projeto de colonização no Piauí e qual a relação da ocupação desse território com a questão da saúde pública no período?

O serviço de localização e colonização foi autorizado em 1931 para dar amparo aos flagelados vítimas da grande seca que atingia o Nordeste. O decreto determinou a construção de colônias e centros agrícolas em zonas de potencialidade agrícola, que fossem menos afetadas pelas secas, e pudessem acolher e fixar os sertanejos nos sertões, evitando a migração para outras regiões.

A expectativa era de que as colônias, os açudes, os canais de irrigação e as estradas funcionassem de forma interligada. Logo, algumas porções do território se tornaram estratégicas para instalação desse programa da IFOCS, que corroborava com a ideia de integração e expansão da autoridade estatal do governo de Getúlio Vargas que, posteriormente, se concretizou na Marcha para o Oeste.

O Piauí, juntamente com Maranhão, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Alagoas, Bahia e Pará foi um dos estados escolhidos para a implantação desse projeto de colonização. Assim, recebeu uma colônia agrícola localizada no município de União, no extinto centro agrícola David Caldas, que havia sido criado em 1912. Na seca de 1932 o espaço foi reaproveitado e hospedou 2.850 pessoas, distribuídas em 420 famílias.

É importante destacar que o modelo de colonização adotado no Piauí sofreu modificações e assumiu características particulares, sendo bastante elogiado pelo ministro da agricultura, Juarez Távora, que cogitou de aplicá-lo em outras regiões.

Para além das questões mencionadas, outra de grande relevância foi o saneamento e combate à malária/impaludismo na colônia agrícola David Caldas. Desde sua fundação, em 1912, o estado sanitário da colônia foi um dos principais empecilhos para o seu desenvolvimento, chegando a ser descrita como “centro de morte”.

Situada à margem do Parnaíba, David Caldas sofria com as inundações do rio e de lagoas, assim como outras partes do território piauiense, onde a doença ocorria de forma endêmica tanto em períodos de chuvas como de secas. O cenário era tão precário que a Fundação Rockefeller passou a atuar na região a partir de setembro de 1931 no combate à febre amarela e, consequentemente, do Anopheles.

Antes de iniciar o projeto de colonização foi sugerido o saneamento das terras de David Caldas, por meio do escoamento das águas para acabar com os focos de mosquitos. Foi também criado um serviço de saúde, onde era prestado atendimento médico aos colonos e oferecido comprimidos de quinina.

Entre os anos de 1933 e 1934 foram atendidos um total de 15.986 pessoas no posto médico itinerante, responsável pela colônia. Outra doença que apareceu nos registros do centro agrícola foi o tracoma, uma doença igualmente ocasionada pelas deficientes condições de saneamento e acesso a água.

RS: Nilo Peçanha, o primeiro e único presidente negro do país, desempenhou um papel importante na construção de algumas instituições que beneficiaram o estado do Piauí, em um período marcado por explicações racializadas que atribuíam o atraso do país a essa categoria social, em vez de considerar outros aspectos como a desigualdade e o legado da escravidão. Junto a ele, o paraibano Epitácio Pessoa também merece destaque. Você poderia comentar sobre o papel desses atores no contexto de sua pesquisa?

Fonte: O Problema Social e Econômico das Obras Contra as Sêcas. Relatório apresentado, em julho de 1933, ao Snr. Ministro da Viação e Obras Públicas, Dr. José Américo de Almeida, pelo engenheiro agrônomo Evaristo Leitão, 1937.

Nilo Peçanha foi o presidente que criou a Inspetoria de Obras Contra as Secas – IOCS, em 1909, considerado um marco no processo de institucionalização do combate à seca. Esse sujeito tinha o desejo de se aproximar das elites nordestinas, construindo uma aliança que pudesse fazer frente ao domínio de São Paulo e Minas Gerais, assim sua atenção se voltou para a região, que desde o século passado reclamava atenção para a solução do problema da seca.

Já o presidente Epitácio Pessoa foi o responsável por dar um grande impulso nas obras contra as secas transformando, em 1919, a Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS) em Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS). Durante seu governo, no qual a política de combate às secas teve seu auge, abriu considerável crédito para continuação dos trabalhos no Nordeste. Ele defendeu um programa de modernização dos sertões a partir da construção de açudes, de poços, de canais de irrigação, de estradas de ferro e de rodagem, de portos e de centros de produção.

Posteriormente, na década de 1930, o presidente Getúlio Vargas autorizou a retomada do programa de Epitácio Pessoa, que havia sido paralisado nas décadas anteriores, por considerar adequado para solução do problema das secas.

Tudo isso evidencia a importância do papel desses dois presidentes na elaboração de políticas públicas voltadas para o Nordeste.

RS: Seu trabalho avança em relação à historiografia sobre o flagelo da seca no Piauí, discutindo o papel desse fenômeno na conformação do território. No contexto das décadas de 1950 e 1960, importantes intelectuais brasileiros, como Celso Furtado, chamaram atenção para outras dimensões além do fenômeno climático, considerando a seca como algo que interagia com uma realidade social extremamente desigual. Pode comentar sobre essa perspectiva em sua pesquisa?

Identifiquei, na década de 1930, após a reestruturação da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas, ainda que de forma incipiente, movimentos feitos por engenheiros e agrônomos, como Luís Augusto Vieira, Evaristo Leitão, Ildephonso Simões Lopes, José Augusto Trinidade e José Guimarães Duque, na tentativa de direcionar o órgão para uma percepção mais ampla da seca, ou seja, para além da questão climática.

Estes sujeitos apontavam que somente o armazenamento de água não era suficiente para solução do problema, pois era preciso também promover o desenvolvimento agrícola dessas regiões por meio da produção de diferentes culturas, que serviriam para alimentar a população. Posteriormente, tal postura resultou em medidas adotadas dentro do programa do órgão, com o progresso dos canais de irrigação na década de 1940.

Mesmo que não houvesse intenção de alterar a estrutura fundiária, o debate em torno do direcionamento das obras da IFOCS trouxe à tona a ideia da seca como um fenômeno social, não ficando restrita apenas a um problema de consequências puramente meteorológica.

A historiadora e pesquisadora Laila Pedrosa. Foto: arquivo pessoal.

RS: Por fim, agradecemos sua colaboração com o Observatório História e Saúde. Sabemos que seu trabalho demandou tempo e consulta a diferentes acervos, muitas vezes não acessíveis ao grande público. Para finalizar esta entrevista, além de indicar alguns dos acervos que você utilizou, poderia destacar a importância do seu estudo e quem deveria conhecer os seus resultados?

Um dos acervos que mais contribuiu para o desenvolvimento do trabalho foi do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS), em Fortaleza. Na biblioteca dessa instituição foi possível consultar os relatórios técnicos das décadas de 1920 a 1940, os boletins e outras publicações dos trabalhos realizados no Nordeste pela Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas. Também tive acesso ao acervo da biblioteca do Club de Engenharia, no Rio de Janeiro, onde encontrei vários números de sua revista, servindo como complemento a documentação sobre os debates e as obras contra as secas.

No Piauí um dos acervos visitados foi o Arquivo Público do Estado do Piauí (APEPI), em Teresina, onde localizei as mensagens dos governadores piauienses e inúmeros jornais. Além das instituições físicas mencionadas, e outras que não foram citadas, mas que constam na tese, também consultei diversos acervos digitais. É importante lembrar que o trabalho foi escrito durante a pandemia de Covid-19, então, as fontes em formato digital tiveram grande relevância para o desenvolvimento da pesquisa.

Sobre a importância do meu estudo, penso que esteja nos avanços e diálogos em relação à historiografia piauiense e nacional sobre a temática das secas, uma vez que não se trata de um trabalho que aborda apenas questões a nível local ou regional, mas que parte de um espaço, o Piauí, e de uma região, o Nordeste, para entender as particularidades de um projeto elaborado a âmbito nacional em suas diferentes escalas.

Além disso, a tese está inserida nos estudos de História das Ciências e da Saúde, onde analisa um conjunto de políticas públicas desenvolvidas pelo Estado brasileiro para construção de uma infraestrutura hídrica, viária e agrícola, bem como de saneamento, nas regiões sob atuação da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas.

Já sobre quem deve conhecer meu trabalho, acredito que pesquisadores e historiadores – como também pessoas de outras áreas – que desejem aprofundar, dialogar e pesquisar sobre a temática. Por fim, todos aqueles que tenham interesse na História das Ciências, da Saúde, do Piauí e do Brasil República.

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