O copo meio cheio, meio vazio da política de Luiz Henrique Mandetta

07/04/2020

Opinião

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A COVID-19 [1] é uma doença respiratória viral que pode ter manifestação aguda e levar infectados à morte. Identificada pela primeira vez em Wuhan, na província de Hubei, República Popular da China, em 1 de dezembro de 2019, teve o primeiro caso reportado às autoridades daquele país em 31 de dezembro do mesmo ano.[2] Os primeiros casos confirmados fora da China continental começaram a ser registrados por volta de meados de janeiro de 2020. No dia 13 de janeiro, por exemplo, autoridades tailandesas confirmaram o primeiro caso de Covid-19 naquele país. No correr do mês de fevereiro, inúmeros casos foram registrados em diferentes países do mundo.[3] Finalmente, em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que o planeta vivia uma situação de pandemia de Covid-19 [4],[5]. À esta altura, a situação sanitária de diversos países se não era dramática, certamente ensejava forte preocupação por parte das autoridades sanitárias nacionais.[6]

A situação brasileira não seguiu trajetória de todo distinta dos demais países. No final de janeiro de 2020, o Ministério da Saúde do Brasil confirmou a existência de três casos suspeitos de Coronavírus, localizados em Belo Horizonte, Porto Alegre e Curitiba.[7] No início de fevereiro, o Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, afirmou que o Brasil, mesmo sem casos confirmados da doença, iria reconhecer o vírus como uma Emergência de Saúde Pública de Âmbito Internacional.[8] Neste mesmo período, o governo brasileiro tomou a iniciativa de repatriar 29 cidadãos que estavam em quarentena em Wuhan.[9] Em urgência, o Senado aprovava o projeto de previa regras para quarentena dos brasileiros que retornavam do estrangeiro.

Ao mesmo tempo, o número de casos positivos suspeitos crescia no país. No dia 26 de fevereiro foi confirmado o primeiro caso de Covid-19 no Brasil. Tratava-se de um cidadão, morador de São Paulo, recém chegado de Milão, na Itália.[10] No mesmo período, autoridades do Ministério da Saúde comunicavam também a existência crescente de casos suspeitos.[11]

No início de março, o balanço oficial dava conta de 9 casos confirmados e 635 casos suspeitos.[12] No dia 17 de março, o Estado de São Paulo registrou a primeira morte no Brasil pelo novo coronavírus, a vítima foi um homem de 62 anos que estava internado em um hospital na capital.

Ao final do mês de março, o país registrava perto de 6 mil casos confirmados. Boa parte das autoridades sanitárias estaduais já adotava, à esta altura, medidas que impunham restrições, mais ou menos severas, à circulação de pessoas em suas principais cidades. A posição oficial do Ministério da Saúde brasileiro, ao longo do processo até aqui narrado, regra geral, não diferia das orientações estabelecidas por autoridades tecno-científicas, como as da OMS e de especialistas nacionais e internacionais no que concerne ao enfrentamento do grave quadro sanitário já instalado.

Em que pesem as posições do Ministro Mandetta, como dissemos, até aqui sempre afinadas com as orientações técnicas internacionais, o Presidente da República, em diversas ocasiões, revelou entendimento distinto da realidade, adotando posicionamentos, podemos dizer, conflitantes com relação às orientações estabelecidas pelo seu próprio corpo técnico e ministro. Se o Ministério da Saúde se mostrava alinhado com uma orientação isolacionista (isolamento horizontal), como uma forma de conter ou retardar um aumento abrupto de casos novos em um curto espaço de tempo; o Presidente da República tomava, em algumas ocasiões, posição que relativizava a gravidade e os efeitos da epidemia.

A posição do Presidente da República, e também do núcleo ideológico mais a ele vinculado, buscou, desde a chegada do Coronavírus em nosso território, adotar a obtenção da chamada “imunidade de grupo” como forma de enfrentar a disseminação da pandemia.

Na última semana de março, quando se confirmava tanto a transmissão comunitária do vírus quanto a primeira morte por Covid-19, o ambiente de tensão social e política era flagrante no país. Desde o início do mês se acumulavam manifestações públicas razoavelmente episódicas do Presidente da República contra orientações técnicas vindas da pasta da saúde. No dia 24 de março, o Presidente Bolsonaro se dirige à nação em rede nacional de rádio e TV.[13]

Em discurso radical, Bolsonaro refere-se à pandemia de Covid-19 como uma “gripezinha” e sugere que as medidas para o seu enfrentamento deveriam envolver apenas o isolamento de idosos e grupos de risco. Sem considerar o potencial de contágio das demais pessoas em circulação, Bolsonaro procurava atender, segundo ele mesmo se referia, aos interesses econômicos, sem dúvida afetados com uma paralisação das pessoas em maior escala.

A repercussão pública do pronunciamento presidencial foi imensa e, regra geral, houve ampla rejeição ao entendimento do Presidente da República. No mesmo dia, por intermédio do Twitter, os presidentes da Câmara, do Senado e outras autoridades se posicionaram de forma contundentemente crítica ao Presidente da República. A chamada grande mídia também deu imensa repercussão ao pronunciamento, não poupando o chefe do Executivo das mesmas críticas.[14]

A posição do Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, continuou a favor de uma contenção da circulação de todos os cidadãos, independente do enquadramento destes em grupo de risco. Tal posição sustentava-se na tese, bem amparada na ciência brasileira e mundial, que considerava que uma paralisação seletiva ampliaria a presença do vírus nas sociedades e sobrecarregaria as redes pública e privada de saúde.

Os panelaços nas grandes cidades do país, já em curso, se intensificaram a partir do pronunciamento do presidente. Pouco tempo depois, no dia 27 de março, o presidente atacou os governadores de estado, uma vez que os mesmos já conduziam, em sua grande maioria, ações e politicas alinhadas ao Ministério da Saúde.

As críticas não passaram desapercebidas. Antigos aliados, como o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), e então aliados, como o governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM), romperam publicamente com qualquer alinhamento às orientações vindas da Presidência da República.[15]

No dia 31 de março, em mais um pronunciamento presidencial na TV e rádio, com base numa apropriação inadequada do discurso de Tedros Adhanom, diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Bolsonaro baixou o tom, mas manteve sua principal tese, qual seja:  demandava união das instituições da República e dos cidadãos em respeito a necessidade de todos voltarem às atividades normais de trabalho.[16]

Em que pese o relativo distensionamento da sociedade frente ao pronunciamento presidencial, a partir do dia seguinte, nas redes sociais seus apoiadores mantiveram o tom conspiratório acerca de uma pandemia “provocada pela China comunista”.

No dia 6 de abril dois fatos balançaram a opinião pública. O primeiro, protagonizado pelo Ministro da Educação, Abraham Weintraub. Pelo Twitter o ministro sugeriu que os chineses teriam provocado intencionalmente a pandemia para se beneficiarem economicamente da crise. O mal-estar diplomático logo se estabeleceu e ainda não se encontra superado. Mas foi no decorrer da tarde do mesmo dia que as tensões se estabeleciam com inegável força.[17]

Jornais de grande circulação noticiaram a demissão certa do Ministro da Saúde antes do final do dia. Em Brasília, reuniões de gabinete e cúpula, em sentido contrário, tentaram reverter aquilo que se apresentava como fato. Em coletiva à imprensa, na tarde do mesmo dia, Luiz Henrique Mandetta anunciava sua permanência à frente da pasta. Em tom duro, por vezes emocionado, informava que manteria as orientações gerais de combate à pandemia no país. Disse que não se podia aceitar interferências políticas e ideológicas nas orientações técnicas e científicas do Ministério. No limite, pode-se concluir que o tom foi de certa repulsa ao Presidente da República e aos seus seguidores.[18]

Cercado e apoiado por sua equipe, por representantes de instituições, como o Conselho Nacional dos Secretários de Saúde (CONASS) e o Conselho nacional das Secretarias Municipais de Saúde (CONASEMS), entre outros organismos de classe; e também por representantes do Parlamento, Mandetta saia, aparentemente, vitorioso na manutenção da política então vigente no Ministério da Saúde.

Chamamos a atenção para o seguinte: em primeiro lugar, para o histórico de fatos até aqui narrados. Eles expressam um conflito estrutural entre as forças e teses que mobilizam a Presidência da República e aquelas que organizam a conduta do Ministério da Saúde. Da forma como o chefe do Executivo conduz a discussão, não há qualquer compatibilidade entre elas. Bolsonaro fez uma opção deliberada por diminuir os efeitos da crise sanitária sobre o mercado financeiro e o empresariado. Naturalizou, por diversas vezes, a ocorrência da epidemia e de vítimas fatais entre os trabalhadores.

Nestes marcos, não parece haver superação da crise política que não passe pela subordinação de uma das partes à tese de outrem. Neste sentido, é preciso que a sociedade brasileira mantenha a atenção para alguns sinais que podem representar uma superação da disputa, no sentido mencionado acima, com desfecho ruim para os cidadãos do país. Observem que durante a coletiva do ministro, sua equipe técnica defendeu a existência de “medidas proporcionais ao que está sendo apresentado em cada município, em cada região, em cada capital”. Dito de outro modo, ao que tudo indica, teremos pela frente algum mecanismo que poderá ser de afrouxamento da política até então conduzida pelo próprio Ministério.

Precisamos conferir, nos próximos dias, se o copo da política de saúde de Mandetta se completará com água ou se, esvaziando-o, morreremos de sede e de outras mazelas. Água é direito de todos.

Notas

[1] Ministério da Saúde. Acessível: https://coronavirus.saude.gov.br/.

[2] Fundação Oswaldo Cruz. Acessível: https://portal.fiocruz.br/coronavirus-perguntas-e-respostas.

[3] «Timeline: How the new coronavirus spread» (em inglês). Al Jazeera.

[4] «OMS declara pandemia de coronavírus». G1.

[5] Helen Branswell; Andrew Joseph (11 de março de 2020). «WHO declares the coronavirus outbreak a pandemic» (em inglês). STAT.

[6] «Coronavirus COVID-19 Global Cases by Johns Hopkins CSSE». gisanddata.maps.arcgis.com (em inglês).

[7] «Battle against coronavirus turns to Italy; Wall Street falls on pandemic fears». Reuters. 25 de fevereiro de 2020.

[8] Lovelace, Berkeley (28 de fevereiro de 2020). «WHO raises coronavirus threat assessment to its highest level: ‘Wake up. Get ready. This virus may be on its way’». CNBC.

[9] Wan, William (11 de março de 2020). «WHO declares a pandemic of coronavirus disease covid-19». The Washington Post.

[10] «Primeiro caso de coronavírus no Brasil completa um mês» G1.

[11] «País adotará emergência para retirar cidadãos de área de surto de coronavírus, diz ministro». G1.

[12] «Coronavírus: brasileiros na China devem chegar ao país no sábado e cumprir quarentena em Anápolis». G1.

[13] «Bolsonaro pede na TV ‘volta à normalidade’ e fim do ‘confinamento em massa’ e diz que meios de comunicação espalharam ‘pavor’». G1.

[14] «Veja repercussão do pronunciamento de Bolsonaro sobre o coronavírus em que ele contrariou especialistas e pediu fim do ‘confinamento em massa’». G1.

[15] «Caiado rompe com Bolsonaro após pronunciamento: “Ignorância não é virtude” ».Veja: https://veja.abril.com.br/politica/caiado-rompe-com-bolsonaro-apos-pronunciamento-ignorancia-nao-e-virtude/

[16] «Em pronunciamento na TV, Bolsonaro muda o tom e não critica o isolamento social». G1

[17] «Weintraub publica insinuações contra a China, depois apaga; embaixada cobra retratação». G1

[18] «Após dia tenso, Mandetta é mantido como ministro da Saúde». G1

Sobre o autor

Carlos Henrique Assunção Paiva é Historiador, Professor do PPGHCS/Fiocruz e do PPGSF/Unesa, Pesquisador do Observatório História e Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC/ Fiocruz).

Como citar este texto

PAIVA, Carlos Henrique Assunção. O copo meio cheio, meio vazio da política de Luiz Henrique Mandetta. Site do Observatório História e Saúde, 07 de abr. 2020. Disponível em: https://ohs.coc.fiocruz.br/posts_ohs/o-copo-meio-cheio-meio-vazio-da-politica-de-luiz-henrique-mandetta/. Acesso em: XX de xxx. e 20XX.

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