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O agravamento da fome: o Covid-19 e suas consequências

01/08/2020

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A pandemia do Covid-19 escancarou o problema da fome no mundo, é o que aponta o documento “O estado da segurança alimentar e da nutrição no mundo 2020” publicado pela Food and Agriculture Organization (FAO), e o documento “O Vírus da Fome: como o coronavírus está aumentando a fome em um mundo faminto” da Oxfam Brasil. Ambos, vindos à público neste mês de julho/2020, ressaltam que o número de famintos e de pessoas vivendo em situação de insegurança alimentar e de fome aumentará substancialmente no pós-pandemia.

Segundo o documento da FAO, o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 2 da Agenda 2030, Fome Zero [1], não será cumprido. Os dados mostram que, antes da pandemia, cerca de 690 milhões de pessoas passavam fome no mundo, ou seja, 8,9% da população mundial, e que esse número vem aumentando desde 2014. Caso essa tendência se mantenha, e sem contar com as consequências do Covid-19, o mundo poderá chegar à marca de 840 milhões de famintos em 2030.

Ao se referir ao Covid-19, o documento da FAO ressalta que qualquer previsão está sujeita a um elevado grau de incerteza, mas com base nas hipóteses de crescimento econômico, a pandemia pode contribuir para o aumento de 83 a 132 milhões de pessoas subalimentadas no mundo em 2020.

O relatório da Oxfam aponta que 10 países e regiões, que já padeciam de situação de fome extrema, apresentam uma agudização da crise alimentar nesse momento de pandemia, são eles: Iêmen, República Democrática do Congo, Afeganistão, Venezuela, região do Sahel da África Ocidental, Etiópia, Sudão, Sudão do Sul, Síria e Haiti, juntos, somam 65% dos famintos do mundo.

O Brasil está na lista de países de renda média que já vinham apresentando um aumento desses números, e com a pandemia, esse quadro se agravou. A tendência, é que milhares de famílias cruzem a linha da pobreza e da extrema pobreza em decorrência do agravamento da crise econômica que, certamente, assolará o mundo.

Fome no Brasil: algumas considerações sobre essa história

No que tange o tema da fome no Brasil, é preciso ressaltar que o país acumula um histórico importante de ações e políticas e chegou a ser considerado referência internacional no assunto. Alguns fatores contribuíram para esse feito, dentre eles destacam-se: a centralidade dada na agenda nacional, a partir de 2003, para a erradicação da fome e da pobreza; a adoção desses objetivos como elementos norteadores da formulação das políticas e a criação de um Sistema  Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) no país. O resultado foi profícuo, tanto que em 2014 o país saiu oficialmente do Mapa da Fome das Nações Unidas, o que significou dizer que menos de 5% da população ingeria quantidade de quilocaloria considerada insuficiente para sobreviver.

Cabe ressaltar que ações de combate à fome dessa envergadura só foram possíveis a partir do reconhecimento da necessidade de pensar estratégias voltadas para questões emergências e estruturais, o que significou parcerias entre setores da economia, da saúde, da educação e da segurança.

Dar luz a essas informações é importante para que possamos compreender como estava o Brasil quando a pandemia chegou por aqui. Por ora, cumpre dizer que ao longo dos últimos cinco anos houve um aumento preocupante do número de pessoas em situação de pobreza e extrema pobreza, o que já havia colocado o país na eminência de retornar ao Mapa da Fome. Tendo em vista as consequências que a COVID-19 e as escolhas feitas para o seu enfrentamento vão deixar, é provável que voltemos a ocupar um lugar nesse Mapa.

Antes do COVID-19

O Covid-19 chega em um Brasil polarizado politicamente, em uma crise econômica, com altas taxas de desemprego e após reformas no aparato institucional de proteção social.

Dados do IBGE publicados em 2019, apontam um aumento no número de pessoas vivendo em situação de extrema pobreza, totalizando 13,5 milhões. Isso significou dizer que 13,5 milhões de brasileiros estavam vivendo com RS 145/mensais, o que daria cerca de R$ 4,80 por dia. Vale destacar que no período de 2014 a 2019 cerca de 4,5 milhões de pessoas passaram a viver em situação de extrema pobreza, mudando o perfil dessa curva que, até então, apresentava uma evolução positiva e, consequentemente, uma melhora da qualidade de vida da população.

Outro ponto importante é referente a taxa de desemprego. Em uma série história do IBGE é possível identificar um progressivo aumento desse indicador a partir de 2014.

Gráfico – Taxa de desocupação jan 2012 – mar 2020 – FONTE IBGE

Nota-se alguns períodos de queda nos números que sucederam 2014, no entanto, nada comparado com o que vinha sendo apresentado pelos dados dos anos anteriores.

Soma-se a isso o progressivo desmonte dos programas e políticas pensados, especificamente, no âmbito da segurança alimentar e nutricional e combate à fome. Entre os exemplos a serem citados, estão: o desfinanciamento do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) e a exclusão de famílias no Programa Bolsa Família.

O PAA foi criado em 2003 com o objetivo de viabilizar a compra direta da agricultura familiar, sem licitação, visando o abastecimento de equipamentos públicos voltados para fornecimento de alimentos e refeições a populações em situação de vulnerabilidade social (restaurantes populares, instituições públicas de ensino). Desde 2014, o programa vem sofrendo um desfinanciamento progressivo. O orçamento previsto na LOA para o PAA ainda em 2014 foi de R$1,3 bilhão; em 2018 esse valor caiu para R$ 219 milhões. Diferença que se expressa quando olhamos os números referentes a toneladas de alimentos adquiridos, em 2012 esse valor correspondeu a 529 mil toneladas; em 2017 o número caiu para 128,6 mil, o que representou uma redução de 76%, e certamente gerou impacto direto para o produtor.

A extinção do CONSEA através da MP870/2019, principal instância de monitoramento, formulação e avaliação de políticas voltadas para o combate à fome no país, marca o desmantelamento do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) e interrompe medidas que tinham foco na garantia do direito humano à alimentação.

Por fim, no que concerne o Programa Bolsa Família, antes mesmo da pandemia a imprensa noticiava uma fila de espera de 1 milhão de famílias, bem como a exclusão de, ao menos, 500 mil nos últimos 3 anos do programa. Cabe destacar que o valor repassado pelo programa é, muitas vezes, a principal fonte de renda de famílias que se encontram em situação de vulnerabilidade social.

Esses são alguns pontos que compõe o cenário que o coronavírus encontra ao aterrissar no Brasil. A população já vinha sofrendo ataques no âmbito dos direitos fundamentais, e foi surpreendida por uma doença que hoje se tem mais perguntas do que respostas.

Olhando para esse conjunto de informações, é difícil ser otimista. Como destaca os relatórios referidos anteriormente, embora haja incertezas em relação as consequências da pandemia no mundo, é certo que o número de famintos irá aumentar.

Ações e reações

No Brasil, além do Covid-19, estamos encarando uma gestão federal instável, controversa e que vem operando ações de desmonte em vários setores, em especial no de proteção social. Diante de um cenário tão desafiador, algumas propostas em caráter emergencial foram criadas, bem como estratégias para fortalecimento de programas já existente, mas que estavam sem recurso até então. Nesse sentido, é imprescindível frisar o papel central de organizações da sociedade civil, que desde o início da pandemia tem atuado de maneira incansável na articulação dessas propostas, cujos desdobramentos, certamente, irão impactar a vida de milhões de brasileiros.

No que diz respeito, diretamente a questão da fome, algumas medidas ganham destaque.

1. Auxílio Emergencial

O auxílio surgiu como uma proposta no valor de R$ 200,00. A Campanha Renda Básica que Queremos, composta por mais de 160 entidades e organizações da sociedade civil, pressionou o congresso, que estabeleceu o valor de R$ 600,00. Até o momento, o benefício é destinado aos trabalhadores informais, microempreendedores individuais (MEI), autônomos e desempregados. A despeito do modo de implementação, que foi bastante controverso, a medida representou uma conquista importante da oposição. Inicialmente, o benefício seria por 3 meses, foi prorrogado por mais 2, e a pauta da Campanha agora é estender até 31 de dezembro.

2. PL 735/2020

Entre as categorias que ficaram de fora do AE, estão os agricultores familiares. Cabe destacar que, aproximadamente, 70% da alimentação do brasileiro vem dessa categoria. Através de uma articulação de movimentos sociais e organizações da sociedade civil, foi aprovado na câmara o projeto de lei emergencial PL 735/2020, que tem como objetivo apoiar a agricultura familiar com um pacote de medidas emergenciais enquanto durar o estado de calamidade pública. A próxima etapa é a aprovação no senado.

3. Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) 

Diante do estado de calamidade pública a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), em parceria com outras organizações da sociedade civil, pautou um projeto que previa a destinação de 500 milhões para o programa, o resultado foi a aprovação da MP 957/2020 em abril. A pressão segue para agilizar o repasse desses recursos.

Esses são exemplos de iniciativas em curso que, seguramente, terão impactos na questão da fome no país, de maneira direta ou indiretamente. É fundamental que nós não esqueçamos que a alimentação e nutrição adequadas são direitos, e que pensar em formas de tornar o acesso mais justo e sustentável é urgente. Há inúmeras alternativas para o enfrentamento da crise econômica e social que o Covid-19 está desencadeando nos diferentes países, será preciso fazer escolhas, resta saber se serão escolhas que vão na direção da redução de desigualdades e em benefício da população, ou não. Enquanto isso, seguimos na luta!

Notas

[1] Em setembro de 2015, na Cúpula de Desenvolvimento Sustentável realizada em Nova York, 193 países-membros das Nações Unidas estabeleceram a agenda “Transformando Nosso Mundo: A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável” com 17 objetivos e 169 metas. São Objetivos de Desenvolvimento Sustentável: 1. Erradicação da pobreza; 2 Fome Zero e Agricultura Sustentável; 3. Saúde e bem-estar; 4. Educação de qualidade; 5. Igualdade de gênero; 6. Água potável e saneamento; 7. Energia limpa e acessível; 8. Trabalho decente e crescimento econômico; 9; Indústria, inovação e infraestrutura; 10. Redução de desigualdades; 11. Cidades e comunidades sustentáveis; 12. Consumo e produção responsável; 13. Ação contra a mudança do clima; 14. Vida na água; 15. Vida terrestre; 16. Paz, justiça e instituições eficazes; 17. Parcerias e meios de implementação.

Referências

FAO, FIDA, UNICEF, PAM e OMS. 2020. O estado da segurança e nutrição alimentar no mundo 2020.  Transformando os sistemas alimentares para dietas saudáveis ​​acessíveis . Roma, FAO. (Disponível em: http://www.fao.org/documents/card/en/c/ca9692en)

OXFAM, 2020. Relatório Oxfam: O Vírus da Fome: como o coronavírus está aumentando a fome em um mundo faminto, 2020. (Disponível em: https://www.oxfam.org.br/noticias/mais-pessoas-morrerao-de-fome-no-mundo-do-que-de-covid-19-em-2020/)

IBGE, 2020. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – PNAD Contínua. Trabalho – Série Histórica: Taxa de desocupação, jan-fev-mar 2012 – mar-abr-mai 2020. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/17270-pnad-continua.html?=&t=series-historicas

DE INDICADORES SOCIAIS, IBGE Síntese. uma análise das condições de vida da população brasileira. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2019.

Sugestão de leitura: Entrevista com Daniel Balaban ( diretor do Centro de Excelência Contra a Fome do Programa Mundial de Alimentos da ONU – WFP, na sigla inglês) – “Se nada for feito, voltamos ao Mapa da Fome”, diz diretor da ONU sobre Brasil – Disponível em : https://www.brasildefato.com.br/2020/07/14/se-nada-for-feito-voltamos-ao-mapa-da-fome-diz-diretor-da-onu-sobre-brasil

Sobre a autora:

Gabriele Carvalho de Freitas é pesquisadora do Observatório História e Saúde – COC/Fiocruz. Doutoranda em Saúde Coletiva no Instituto de Medicina Social – IMS/UERJ e membro do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional – FBSSAN.

Como citar esse artigo

FREITAS, Gabriele Carvalho de. Agravamento da fome: Covid-19 e suas consequências. Site do Observatório História e Saúde – COC/Fiocruz, 20XX. Disponível em: https://ohs.coc.fiocruz.br/posts_ohs/o-agravamento-da-fome-o-covid-19-e-suas-consequencias/. Acesso em: XX de xxx. de 20XX.

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