Para o lançamento do novo website do Observatório História e Saúde, nossa equipe ouviu o jornalista, historiador e professor adjunto de História Contemporânea do Departamento de História da Universidade de Brasília (UNB), Bruno Leal Pastor de Carvalho, que falou sobre divulgação da História.
Bruno é o fundador e editor do portal Café História, referência em divulgação da história e história pública.
Lançado em 2008, o Café História apresenta dados robustos: mais de 15 milhões de acessos desde sua criação, sendo 2 a 5 mil acessos diários, que podem atingir picos de 50 mil acessos/dia dependendo do conteúdo e dos algoritmos; mais de 300 textos originais, quase todos produzidos por colaboradores convidados. No Facebook, a página possui mais de 300 mil seguidores, mais de 10 mil no YouTube e, no Twitter e Instagram, mais de 30 mil cada (Fonte: Café História).
Na entrevista, Bruno explica um dos motivos para o interesse crescente do público nos temas do portal, que confirmam o sucesso do empreendimento. “Existe um projeto editorial por trás do Café História que pensa cuidadosamente a linguagem, o uso da imagem, o título, o hipertexto, as pautas e a relação com a audiência, nada é por acaso. Neste sentido, acho que os historiadores podem aprender muito com os jornalistas”.
Você criou há 13 anos um portal que hoje é referência em divulgação da história. O conteúdo do Café História é utilizado em questões de provas, concursos e olimpíadas de história. Como surgiu a ideia de popularizar a história para além do ensino e da pesquisa?
A ideia original do que hoje é o Café História surgiu em meados da década de 2000, quando eu cursava, concomitantemente, as graduações de jornalismo e história. Aquela foi uma época muito importante para os rumos da comunicação social no Brasil. O país estava escolhendo o seu modelo de TV digital, a banda larga popularizava-se e os smartphones também. No curso de jornalismo tudo isso era debatido dentro de sala de aula, como prioridade, e nós tínhamos certeza de estar vivendo um momento ímpar. Na história, por outro lado, isso ainda não era tão nítido, boa parte dos meus colegas ainda não enxergava a internet como algo capaz de mudar a forma de fazer, pensar e divulgar o conhecimento histórico. Poucos historiadores pensavam assim na época.
Foi quando eu tive o impulso de criar um projeto que combinasse as minhas duas áreas de formação. Eu esperava produzir algo que pudesse, na internet, divulgar o conhecimento histórico para amplas audiências e, ao mesmo tempo, reunir pesquisadores de diversos lugares, para que eles trocassem informações, ideias, documentos e o que mais julgassem pertinente. Eu tinha acabado de estudar jornalismo científico e comunidades de prática. Estava doido fazer algo dentro deste espírito.
Com se deu essa trajetória, você encontrou muitos obstáculos?
As primeiras tentativas não deram lá muito certo. Foram alguns blogs, comunidades de Orkut e muitos fóruns online, até finalmente chegar ao formato de rede social, utilizado pelo Café História em sua primeira fase, entre 2008 e 2016. Eu sempre brinco dizendo que naquela época era “tudo mato”. O que quero dizer com isso? Que nós, ocupados com divulgação científica na internet, não tínhamos tantos parâmetros ou referências. Ainda mais no campo das humanidades. A solução era simplesmente testar. E isso, na verdade, tem se mantido como parte do projeto: até hoje eu experimento muita coisa no Café História. Nessa primeira fase do Café História, pelo que me lembro, um dos maiores desafios era manter a qualidade do conteúdo.
Quando a rede tinha mil ou duas mil pessoas era mais fácil, pois você conseguia fazer a moderação de quase tudo que subia na rede, mas quando o Café História passou a ter 10, 20, 30 mil perfis ativos, você meio que perde o controle. Todo mundo podia publicar no Café História, o que, no longo prazo, à medida que a comunidade crescia, se tornou um problema. Esse é, talvez, o maior obstáculo de plataformas colaborativas. Eu comecei a ver muito conteúdo duplicado, fóruns abandonados, datados, agressões entre os participantes e, principalmente, conteúdo que tinha pouco a ver, efetivamente, com a história que era produzida na universidade. Isso ficou evidente por volta de 2013.
Como resolveu essa questão?
Primeiramente, eu tentei enfrentar o problema, fosse publicando normas de conduta e, em seguida, aumentando a moderação do conteúdo. Mas não surtiu efeito. Havia na rede um claro cenário de entropia e saturação. Foi quando eu comecei a reformular o projeto. Em 2017 o Café História foi relançado. Esse novo Café História tinha nova identidade visual, nova navegabilidade, nova política editorial e até novo endereço. Nesta segunda fase, que se estende até hoje, o Café História deixou de ser uma rede social e assumiu-se como um portal 100% de divulgação da história, ainda baseado na colaboração, mas na colaboração entre pesquisadores. Nesse novo formato, os participantes não produzem mais conteúdo. Não me arrependo nem um pouco dessa mudança. Essa renovação salvou o projeto e ampliou o seu compromisso com a divulgação científica e com a história pública.
Em primeiro lugar, eu sinto que os leitores do Café História confiam bastante nos conteúdos que nós publicamos. E isso é muito importante para quem trabalha com produção de conhecimento e informação, pois significa que você construiu um bom nome, uma boa marca e tem credibilidade. Isso é fruto de uma parceria que nós mantemos com os nossos colaboradores e colaboradoras. O leitor do Café História sabe que ao acessar o nosso projeto vai encontrar conteúdos produzidos por profissionais de excelência.
Em segundo lugar, existe um projeto editorial por trás do Café História que pensa cuidadosamente a linguagem, o uso da imagem, o título, o hipertexto, as pautas e a relação com a audiência, nada é por acaso. Nós não fazemos divulgação científica e história pública de forma incidental ou irrefletida. Acho, inclusive, que esse é um dos grandes diferenciais do Café História: nós estamos o tempo inteiro pensando a nossa prática divulgadora.
É possível afirmar que há maior interesse, ou que o leitor percebe hoje a importância da história para a compreensão do presente?
O interesse do público pela história é muito antigo, remontando ao século XIX. Mas é verdade que esse interesse cresceu muito no pós-guerra. Nos anos 1950, as revistas de popularização de história se multiplicam em diversos países, principalmente na Europa, que vivia um processo de grandes transformações sociais e políticas. Talvez o melhor exemplo desse fenômeno seja o surgimento da revista History Today, na Inglaterra, em 1951, em circulação até hoje. As pessoas consomem esse tipo de revista com perspectivas variadas: porque desejam entender as mudanças, porque querem se apegar a um passado que consideram seguro e até porque querem se divertir. Eu acho isso fantástico, porque mostra como a história tem pertinência para a vida das pessoas.
Depois, nos anos 1960, alguns movimentos na historiografia vão dar novo impulso a popularização da história, caso da história do tempo presente e da história vista de baixo. Esse é o momento em que a história invade os jornais, os programas de televisão e que as chamadas “culturas subalternas” vão se ocupar com esse tipo de produção, pois passam a enxergar a história também como uma forma de luta, de resistência e libertação. Mais recentemente, a história digital e a história pública vão dar grandes contribuições para a popularização dos saberes históricos. É quando a prática divulgadora começa a se profissionalizar e a se tornar muito mais consciente de si mesma.
O que eu consigo notar, depois de fazer esse breve e imperfeito panorama da divulgação histórica, é que o interesse social pela história está aí faz tempo; mas o embate entre narrativas populares do passado se tornou muito mais pronunciado. Não me admira, então, que se fale tanto, hoje, em usos políticos do passado, e que as pessoas que estudam isso tenham se aproximado tanto de campos como o da história pública, pois o que nós estamos vivendo é uma árdua disputa pelo passado. E se essa disputa, que é altamente energizada pela politica, é tão maior hoje e se dá especialmente “aqui fora”, no nosso cotidiano, e não mais apenas em espaços intelectuais, é porque, em última instância, as pessoas, os grupos, as organizações, os movimentos sociais, os partidos políticos, todos estão mais cientes do papel do passado na conformação do mundo como nós o entendemos. Então, de forma direta, eu diria que, sim, estamos mais cientes para o valor da história para o presente.
Nesse duplo papel de historiador e jornalista, como você avalia o conhecimento e a expertise do profissional de humanidades, em termos gerais, para fazer divulgação científica, divulgação da história e história pública?
Quando eu comecei a fazer o Café História, o interesse por divulgação histórica ainda era muito tímido, principalmente se comparado com o que vemos hoje. Mas eu não quero dizer com isso que tudo tenha começado agora. A comunidade acadêmica sempre se envolveu com difusão. Ao longo do século XX, muitos historiadores consagrados, como A.J Taylor, Geoffrey Barraclough ou Georges Duby, apenas para citar alguns, se ocuparam com uma história que transbordasse os limites universitários. No Brasil, nós tivemos projetos incríveis, como, por exemplo, a coleção “Tudo é história”, da Editora Brasiliense, nos anos 1980, e a “Revista de História da Biblioteca Nacional”, nos anos 2000.
O problema, a meu ver, é que a divulgação nunca foi prioridade, nunca empolgou tanto os historiadores, pelo menos a maioria, como empolgou a pesquisa e o ensino. Muitos projetos de divulgação – e aí eu me refiro sobretudo aos que são tocados por historiadores profissionais – tiveram trajetórias irregular e curta. Não tivemos tanta continuidade, interesse ou financiamentos como poderíamos ter. A comunicação científica na área de história desenvolveu-se bastante no último século, mas o mesmo não se deu com a divulgação científica na área. E aí, o ponto que eu quero chegar é: precisamos pensar a divulgação científica e a história pública como um projeto de longo prazo para a área de história, como uma de suas prioridades, como uma de suas vocações, precisamos pleitear mais investimentos das agências de fomento e preparar as novas gerações de historiadores dentro deste espírito, não como uma obrigação, claro, pois nem todo historiador deve ser historiador público, mas como uma possibilidade.
Enquanto nós vivemos esse fenômeno de forma lateralizada, de forma meio periférica, os jornalistas se especializaram nessa comunicação pública da história – e de forma muito bem sucedida. Através de livros síntese, de biografias ou de documentários, eles conseguem dialogar muito bem com o público não-especializado, coisa que nós, historiadores, ainda temos muita dificuldade, apesar de todos os avanços que fizemos. Neste sentido, acho que os historiadores podem aprender muito com os jornalistas. Precisamos nos aproximar mais dos jornalistas, estabelecer parcerias, aprender uns com os outros. A narrativa histórica é antes de tudo um produto de comunicação.
Você recentemente reformulou o CF, que está de cara nova, com conteúdo atual e bem interessante, utilizando software livre. Uma vez que o site não é monetizado e não tem uma equipe fixa de colaboradores, como se dá essa gestão?
Parte desta reformulação tinha como objetivo deixar a gestão do Café História mais fácil, menos pesada, mais dinâmica. E acho que consegui fazer isso. O Café História tem hoje um arranjo editorial que me ajuda muito. Tentamos traçar um planejamento anual, pensando em colaboradores, escolhendo pautas, testando novos formatos, tudo de forma muito organizada. A equipe é enxuta, muito pequena mesmo: além de mim, a Ana Paula Tavares, minha companheira, é a subeditora, cuidando mais da parte audiovisual e projetos especiais, e a Thaís Pio Marques é estagiária voluntária, responsável por notícias e reportagens. Quem olha de fora, acha que temos muitos recursos e uma equipe enorme. Mas não temos nada disso. Não temos receita e nem equipe grande. O que faz diferença é justamente esse planejamento, essa organização e a forma profissional como lidamos com a divulgação científica e a história pública. Tentamos profissionalizar ao máximo nossos processos. Isso significa estabelecer agendas, cumprir prazos, estudar divulgação, audiência, mídias sociais, e claro, manter a autocrítica em fogo alto. Felizmente, contamos com a colaboração dos pesquisadores, que aceitam nossos convites para escrever pro site, que trazem novas ideias e nos dão bases sólidas.
Os custos atuais do Café História não são altos, então, eu consigo pagar do meu bolso. Talvez chegue o dia em que não será possível, e aí precisaremos pensar em uma alternativa. Mas até lá, temos tempo e esse novo modelo nos dá uma liberdade editorial enorme. Eu gosto disso.
Nos números de acesso ao Café História, você apontou que podem atingir picos de até 50 mil acessos/dia dependendo do conteúdo e dos algoritmos. O que os algoritmos têm a ver com história e, particularmente, com divulgação científica de história?
Tem tudo a ver. Hoje, todos nós procuramos saber mais sobre história por meio de ferramentas como o Google. Um portal de buscas emprega centenas de critérios a fim de recomendar um determinado resultado e não outro.
Quando você joga termos como “D. Pedro I” ou “Holocausto” numa plataforma como o Google, os algoritmos vão analisar o seu histórico de navegação, suas compras, os filmes que você assistiu, suas buscas anteriores, conteúdos que seus amigos consumiram, os conteúdos históricos mais clicados naquela semana, dentro de um determinado nicho, tudo isso para te oferecer um determinado blog ou um vídeo sobre aqueles assuntos. É um poder e tanto. Nós vamos ler os artigos sobre D. Pedro I e sobre o Holocausto que o Google julgar que são mais importantes para nós. Sabemos também que algoritmos, uma vez que aprendem com os usuários, podem se revelar racistas, homofóbicos, elitistas, podem criar bolhas, reforçar visões dicotômicas etc. Tudo isso pode configurar um repertório de narrativas sobre o passado extremamente problemático. Eu não quero, com isso tudo, demonizar os algoritmos. Algoritmos são importantes, necessários e positivos em nossa vida. Algoritmos são usados, por exemplo, para prevenir acidentes fatais de carro, nos ajudam a produzir melhores vacinas, diagnosticar doenças com mais facilidade e a nos preparar para desastres naturais, de chuvas torrenciais a furacões e terremotos.
Não podemos e não devemos evitá-los. Porém, devemos ser capazes de discuti-los criticamente e de frear usos antiéticos desses modelos matemáticos. Por isso é preciso levar ainda mais o debate das humanidades para os cursos de matemática e de ciência da computação, bem como criar legislações que possam controlar o uso de dados privados. É fundamental ainda lutar para que a comunicação social não esteja nas mãos de poucas big techs, como são conhecidas as grandes empresas de tecnologias. Não é uma luta fácil e nem um debate com o qual nós, historiadores, estamos acostumados, mas precisamos estar minimamente dispostos e preparados para fazê-los. Eu não consigo pensar em muitas tarefas mais importantes para o historiador do século XXI do que o debate crítico sobre as implicações dos meios digitais para a circulação social dos saberes históricos.
O CF nos inspirou. Seguindo seu exemplo, queremos no novo site do OHS dialogar com o maior número possível de pessoas a partir de uma perspectiva que articula ciências sociais, história e saúde coletiva. Que dicas e conselhos você poderia nos dar?
Olha, depois de tanto tempo trabalhando nisso, uma das coisas que eu mais considero importante é a reflexão sobre a prática divulgadora. Acho que o segredo está aí. Um bom projeto de divulgação cientifica e de história pública é um projeto que está o tempo todo pensando em divulgação científica e história pública. Isso significa definir muito bem o público que se deseja alcançar, a relação com esse público, formas de torná-lo participante, reconhecer suas demandas, empregar diferentes formas de linguagem, o uso das mídias sociais, refletir sobre os perigos da comunicação de massas na era dos algoritmos, escolher bem pautas de história, implementar um modelo de comunicação inclusiva, considerar sempre a questão ética, enfim, é o pacote completo. Se você tem um projeto de divulgação científica e não reflete sobre divulgação científica, eu acho que você deixa escapar tudo isso, e os resultados dificilmente serão os melhores.
Bruno Leal Pastor de Carvalho é professor adjunto de História Contemporânea do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB). Professor do Programa de Pós-Graduação em História da UnB. Doutor em História Social pela UFRJ. Fundador e editor do Café História. Pesquisa História Pública, História Digital e Divulgação Científica. Também desenvolve pesquisas sobre crimes nazistas e justiça no pós-guerra. É editor da obra “História Pública e Divulgação Científica”, publicada em 2019 pela editora Letra e Voz.
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