Este conteúdo faz parte do projeto “Rede de Atenção à Saúde na região metropolitana do Rio de Janeiro: trajetória e perspectivas”, executado pela Chamada CNPq / FIOCRUZ / COC No. 08/2021. Cristina Boareto foi entrevistada nos meses de julho e novembro de 2022 por Carlos Henrique Assunção Paiva, Cássia Pitangueira, Maria Tereza Fonseca da Costa e Thais Franco. A íntegra de seu depoimento pode ser vista nos nossos Depoimentos Históricos.
A estruturação da saúde da família no Brasil é relativamente recente: foi nos últimos 30 anos que a estratégia começou a se universalizar, sendo aos poucos estimulada por políticas e diretrizes. Um dos principais nomes desta história no Rio de Janeiro é Cristina Boareto, médica que atuou, por cerca de 18 anos, na Secretaria Municipal de Saúde (SMS), além da rede estadual e do próprio Ministério da Saúde.
Boareto cursou Medicina na Universidade Federal Fluminense (UFF), onde começou a se aproximar de movimentos de militância, como o Diretório Acadêmico, e áreas de atuação voltadas para a saúde coletiva. Ainda na faculdade, despertou seu interesse por temas como a determinação social das doenças e Saúde Comunitária, finalizando o curso em 1978. No ano seguinte, entra para a Residência multiprofissional em Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz), sendo marcante nesta época o contato com iniciativas de interiorização da saúde, a exemplo do Projeto Montes Claros . Logo após, torna-se gestora no serviço público.
Driblando a escassez antes do SUS
Cristina foi uma das protagonistas da estruturação de postos de saúde para ofertarem mais serviços e atendimento clínico. Contratada pela Secretaria de Saúde do estado do Rio de Janeiro no início dos anos 1980, atuou em unidades de Niterói; tanto no Hospital Azevedo Lima, no qual foi diretora, quanto em demais unidades de saúde, que eram poucas. Numa época em que as unidades de saúde básicas “só faziam abreugrafia* e raio-x”, nas suas palavras, iniciou-se a formação de uma rede para algumas especialidades, como a Ginecologia e Obstetrícia. Algumas parcerias foram fundamentais nesse processo, a exemplo de uma Residência médica da Universidade Federal Fluminense (UFF) num posto médico do bairro Caramujo. Parte das atividades do posto foram temporariamente desvinculadas do Centro de Saúde do município e vinculadas ao hospital Azevedo Lima, possibilitando neste posto a realização de pré-natal e parto, por exemplo.
Processos como este se multiplicaram pelo país, envolvendo muitos diferentes atores, e representaram os primeiros passos rumo ao desenvolvimento de ações e ao fortalecimento institucional da saúde no país num período em que o SUS estava em pleno processo de formulação. De alguma maneira, ainda que incipiente, era o SUS se definindo antes dos seus marcos de fundação formal.
Em outras ações, Cristina participou, como diretora do Centro de Saúde Santa Rosa em 1984, do fortalecimento não somente da Ginecologia como da Pediatria, áreas fundamentais para a vinculação de mulheres e crianças com o posto local. A iniciativa era parte do concomitante Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), lançado pelo Ministério da Saúde, que visava não somente a questão gestacional, mas também o planejamento familiar, com fornecimento de métodos contraceptivos. A respeito dos primeiros anos da década de 1980 na rede estadual de saúde ela comenta:
[A intenção] era mais de democratizar, de saber das direções [dos hospitais], do que precisava… era mais nesse sentido de captar necessidades para tentar construir junto. Porque tecnicamente a gente estava muito insuficiente de recursos”.
Aporte e qualificação da rede municipal
Após coordenar uma Residência em Saúde Pública no Centro de Saúde Santa Rosa, ainda em Niterói entre 1989 e 1991, Cristina Boareto passa a integrar a equipe da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) do Rio de Janeiro. O período, pós-Constituição de 1988 e concomitante à implantação do Sistema Único de Saúde (SUS), foi marcado tanto pelo início do que se convencionaria chamar de Estratégia Saúde da Família, que deveria ser universalizada no país, quanto pela municipalização das unidades de saúde de outras instâncias, como os Postos de Assistência Médica (PAMs) e hospitais originariamente do INAMPS. Em pouco tempo, Cristina assume a Superintendência de Saúde Coletiva, passando então a trabalhar com programas específicos, a exemplo das doenças crônicas, doenças transmissíveis, saúde escolar, entre outras.
O fortalecimento institucional da SMSRJ também se expressava, nesta mesma época, pelo importante aporte de profissionais, recrutados mediante concurso público, inserindo na rede 500 dentistas para Atenção Primária, 270 sanitaristas, entre outros profissionais. Além dos recursos humanos, investiu-se na estrutura, com inauguração e também reforma de unidades de saúde, especialmente maternidades novas que passavam a fazer parte da rede. Também nesta época foi organizada a Rede de Saúde Mental, com a criação dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e sua modalidade para usuários de álcool e drogas (CAPSad). Era tudo ao mesmo tempo: a transferência de unidades do INAMPS para o município; a gestão dos recursos do governo federal; a alocação de profissionais.
“Aí vieram os INAMPS. Vieram as unidades do INAMPS e as maternidades. Então tinha que botar para dentro, reorganizar, mexer nas suas estruturas, indicar pessoas para chefiar, trazer para a Rede… e tinham reuniões, ia se discutindo a prática, ia se avançando. Depois de 94, eu acho, até 2000 mais ou menos, a gente enfatizou mais a questão dos cuidados”.
Também nesta época, que vai de 1991 a 2005, são criadas na Secretaria Municipal de Saúde as coordenadorias regionais, cujos coordenadores teriam o olhar mais atento para cada conjunto de bairros e poderiam fazer a integração entre hospitais e unidades de outros níveis, de modo a fortalecer a saúde integral. Avançou-se desde as UTIs neonatais, então inexistentes na rede pública, até a identificação precoce das doenças cardiovasculares e medicação para as mesmas. A década de 1990 também foi marcada pela chegada da epidemia de AIDS, o que demandou estruturar o diagnóstico e o tratamento, instalando Centro de Testagem, inserindo infectologista na rede municipal e, por fim, fornecendo medicação. Até mesmo a estrutura administrativa da Secretaria precisou ser aprimorada na época, reformulada para cumprir as normas da transferência de recursos do Ministério da Saúde. Houve informatização das atividades, principalmente quanto à hospitalização, e auditoria.
Não havendo a possibilidade de criar novas unidades de saúde, a prefeitura também inicia experiências-piloto de Saúde da Família em outros espaços, nos bairros desprovidos do serviço, como Maré e Paquetá. A parceria com os Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs) possibilitou realizar atendimentos nas escolas. Foram 117 unidades de Saúde da Família neste modelo, com 600 profissionais entre médicos, enfermeiros e dentistas.
Pacto pela Saúde e o compromisso dos municípios
Toda a experiência de Saúde de Família no município do Rio, vivenciada por Boareto entre 1991 e 2005, foi importante para sua entrada, logo após, no Departamento de Ações Programáticas Estratégicas, estrutura do Ministério da Saúde, em Brasília. Nesta época, o MS avança em políticas setoriais, tais como Mulheres e Crianças, Saúde Mental e Saúde do Idoso. Uma conquista também foi conectar a vigilância em saúde, área de outro departamento do ministério, com a Promoção da Saúde, realizando o Primeiro Seminário Sobre a Política Nacional de Promoção da Saúde. O período ainda foi marcado pelo Pacto pela Saúde, um programa do governo federal que apresentava políticas a serem implantadas e estabelecia metas, como a redução da mortalidade neonatal e aumento de cobertura de mamografia. Os estados e municípios deveriam, em contrapartida, apresentar indicadores comprovando a execução das diretrizes do pacto.
Promoção da Saúde: universalização e olhar focalizado
Após um período de quatro anos atuando no Programa de Tuberculose do Ministério, financiado pelo Fundo Global, Cristina Boareto retorna para a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, assumindo em 2014 a Superintendência de Promoção da Saúde. Nesse ponto, além de ter expandido as equipes de Saúde da Família pelo município, a secretaria avança em políticas relacionadas à determinação social das doenças e grupos prioritários. Para além de alguns já estabelecidos, como mães, crianças, portadores de doenças crônicas e pacientes da Saúde Mental, também se olhava para a saúde da população negra e da população LGBT.
No que se refere à interação entre as diferentes unidades de saúde, houve uma mudança significativa: abandonam-se as Coordenadorias de Área Programática, que tinham o olhar regional, para a adoção das Coordenadorias de Atenção Primária, que continuam atuando nos diversos conjuntos de bairro porém realizando a gestão das unidades básicas, perdendo em parte a integração com os hospitais.
Ainda no fortalecimento da Saúde da Família, a Secretaria começou a investir na Residência médica, formando especialistas para o município e fazendo um novo aporte de profissionais: foram 1.200 equipes implantadas nesta época. Também foi um período em que foram realizados diagnósticos para identificar demandas, o que gerou, por exemplo, a implantação de novas maternidades públicas, assim como uma Casa de Parto em Bangu, tudo isso concomitante aos debates contemporâneos sobre direito da mulher, por exemplo.
“Se pensar nos outros sistemas de rede: a rede de Assistência Social, a rede de Educação, tá bem definido quem é quem. Educação: primeiro grau está no município; passou para o segundo grau, sai do município, já não é dele. Na Saúde não tem isso definido, é uma mistura: os hospitais têm vários níveis de assistência, a gente ainda tem ambulatório federal… Isso, só de organização de serviço de atenção à Saúde, de atendimento”.
Tendo passado pelos períodos em que o Rio de Janeiro tinha apenas 23 unidades de saúde e poucos hospitais estaduais e hospitais federais; a implantação do SUS e as sucessivas diretrizes para a garantia de qualidade da saúde pública; municipalização das unidades e aporte de profissionais de mais qualidade e em maior quantidade; criação das UPAs, Casas de Parto e maternidades, Cristina Boareto reconhece que em todos esses anos o olhar principal das equipes era para o atendimento e sua qualidade. Porém, ao mesmo tempo, reconhece que o direito à saúde integral fica comprometido com a fraca integração entre unidades municipais, estaduais e federais, mantendo gestores preocupados com a operacionalização do acesso à saúde da baixa à alta complexidade, e os usuários do sistema muitas vezes insatisfeitos com a qualidade.
A trajetória de figuras como a Cristina Boareto nos faz pensar sobre algumas coisas importantes. Em primeiro lugar que, a despeito dos avanços institucionais, os problemas colocados para a saúde municipal e para o conjunto do SUS são imensos e complexos. Dizem respeito a inúmeros fatores, entre eles, a histórica dificuldade de tecitura de uma rede de atenção à saúde no município do Rio de Janeiro e em seu entorno. Contudo, é preciso reconhecer que, sob o escrutínio da História, há avanços que precisam ser sinalizados. Embora estes não sejam lineares, ao longo do tempo percebemos que a região também se beneficiou do processo de construção institucional do SUS, que legou políticas como a Estratégia Saúde da Família. Essencial para uma melhor organização da rede de atenção SUS, a ESF também responde por melhorias nos indicadores de saúde locais.
*Abreugrafia é um exame de imagem, como em raio-x, em tamanho diminuído, muito utilizado no século XX para a identificação de doenças no pulmão.