A professora e pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) Renata Reis lançou em junho a exposição “Manguinhos de muitas memórias: histórias dos trabalhadores técnicos da Fiocruz”.
Baseada em sua tese de doutorado, concluída em 2018, a exposição dá visibilidade aos trabalhadores técnicos da Fiocruz, mas, ao fazer isso, também lança luz a esse tipo de trabalhador da área de saúde de modo geral. “Nesses tempos de agora, diante da pandemia do Covid-19, esses trabalhadores têm sido fundamentais no cuidado aos doentes e nos processos de pesquisa, diagnóstico, e exames laboratoriais de confirmação e monitoramento da evolução da doença”, reconhece Renata.
A exposição está disponível na internet e tem entradas também pelo campus da Fiocruz no Rio de Janeiro, misturando o digital e o presencial. “As placas têm um QR Code que, quando acionados com a câmera de um celular, levam o visitante ou o trabalhador da Instituição para o site da exposição virtual”, explica a pesquisadora.
Veja mais informações sobre a exposição na entrevista a seguir.
1- Qual foi a motivação para a realização da pesquisa?
Eu estou há 22 anos na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio e desde 2009 venho trabalhando com a história do trabalho e dos trabalhadores técnicos de saúde. Na época, me intrigava muito a gente saber pouco sobre a história do próprio Joaquim Venâncio, nosso patrono, e sobre este grupo grande de trabalhadores, os auxiliares de laboratório, que participaram junto com os cientistas da construção da ciência brasileira e da saúde pública. Essa inquietação se transformou na minha tese de doutorado, defendida em 2018, intitulada A “grande família” do Instituto Oswaldo Cruz: a contribuição dos trabalhadores auxiliares dos cientistas no início do século 20, onde procurei investigar as relações de trabalho dos primeiros 30 anos da Fiocruz, olhando especificamente para esse universo dos auxiliares de laboratório. Minhas fontes para essa pesquisa foram, principalmente, a documentação dos arquivos históricos da Casa de Oswaldo Cruz.
Quando vi o edital interno voltado para memória institucional em 2020, pensei nessa possibilidade de transformar esse trabalho em uma exposição virtual que pudesse atribuir um lugar de memória para os auxiliares de laboratório da nossa instituição.
Daí a ideia de organizar uma exposição virtual de longa duração, em contínua ampliação e atualização, que possa funcionar como um lugar de preservação da memória destes trabalhadores, um ambiente pedagógico de conhecimento e um repositório voltado à preservação digital de fontes para pesquisas sobre o trabalho técnico na Instituição.
O site da exposição está disponível no servidor da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio. Ao acessá-la o público poderá conhecer a história dos trabalhadores técnicos da Fiocruz, através de pequenos textos elaborados especialmente para a exposição, acompanhados por objetos expográficos (fotografias, documentos digitalizados, áudios, vídeos e etc.).
A exposição virtual se conecta com o que chamamos de pontos de memória em vários locais do Campus da Fiocruz no Rio de Janeiro, inicialmente nos prédios que compõe o conjunto do Núcleo Arquitetônico Histórico de Manguinhos, o NHAM, e na própria EPSJV. Esses pontos de memória estão identificados através de placas instaladas em frente à entrada principal das edificações, contendo um texto interpretativo com informações históricas sobre o prédio, relacionando-as às histórias dos auxiliares de laboratório que ali viviam ou trabalhavam. As placas têm um QR Code que, quando acionados com a câmera de um celular, levam o visitante ou o trabalhador da Instituição para o site da exposição virtual.
2- Quais foram os principais desafios?
Sem dúvida, o principal desafio foi desenvolver esse trabalho durante a pandemia, no auge do distanciamento social. Todas as etapas do processo foram desenvolvidas à distância, trabalhando com a equipe do projeto composta por Phelipe Rezende, museólogo, e William Gomes, desenvolvedor web. Não nos conhecíamos anteriormente e até hoje nos encontramos pouquíssimas vezes pessoalmente. Mesmo assim, o trabalho fluiu muito bem, graças à competência e profissionalismo de ambos profissionais, que abraçaram essa ideia junto comigo.
3- Quais histórias foram mais marcantes?
São muitas as histórias marcantes, disponíveis nos oito módulos da exposição. Mas é o módulo Biografias que reúne as trajetórias dos antigos trabalhadores técnicos. Gostaria de destacar a de José de Vasconcelos, que foi auxiliar dos cientistas Lauro Travassos e Adolpho Lutz. Vasconcellos ingressou no Instituto em 1908. Trabalhava em pesquisas na área de parasitologia acompanhando Travassos e às vezes Lutz em seus laboratórios e nos trabalhos de campo. Mas um acontecimento fez com que ficasse restrito ao ambiente do laboratório: em uma caçada realizada dentro de Manguinhos, Vasconcelos segurou um animal para que seu chefe, Travassos, pudesse dar um tiro certeiro. No entanto, o cientista errou a pontaria e acertou o pé de José de Vasconcellos. Seu pé foi dilacerado. Mesmo assim, continuou trabalhando e morando no IOC, atuando nas pesquisas entomológicas com Lutz.
4- Qual a importância do reconhecimento dos saberes desses trabalhadores para a sociedade atual?
“Desierarquizar” os diversos saberes dos diversos grupos sociais que compõe a sociedade brasileira é um dos principais desafios do nosso tempo e é crucial nos processos de disputa pela democracia. Todos os saberes são importantes, desde os mais simples aos mais complexos, especialmente quando se trata dos cuidados em saúde.
Os trabalhadores técnicos hoje representam mais da metade do contingente total de trabalhadores em saúde no Brasil, distribuídos em diversas categorias profissionais, no entanto, historicamente, têm experimentado políticas de qualificação que não atendem suas demandas específicas por formação, reconhecimento e regulamentação profissional, impactando trajetórias de vida e trabalho.
Expostos aos processos de precarização, que envolvem formas de contratação, direitos, condições de trabalho, incluindo relações sociais determinadas por uma hierarquização de saberes e subordinação de suas práticas, fica reservado para eles um lugar de menor valor dentro das equipes, instituições onde atuam e junto à sociedade. Nesses tempos de agora, diante da pandemia do Covid-19, esses trabalhadores têm sido fundamentais no cuidado aos doentes e nos processos de pesquisa, diagnóstico, e exames laboratoriais de confirmação e monitoramento da evolução da doença.
Acredito que quando conhecemos histórias como as que estão sendo contadas nesta exposição, temos a oportunidade de valorizar e reconhecer a importância e a contribuição que esses trabalhadores prestaram para a construção da ciência e da saúde pública no Brasil. Também podemos observar outros ângulos da trajetória da Fiocruz, que podem colaborar para fortalecer um sentimento de identificação e de pertencimento dos atuais trabalhadores técnicos da Instituição com aqueles que os precederam no passado.
Confira a exposição em www.expomemorias.epsjv.fiocruz.br.
Renata Reis é professora e pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz).