O 4 de fevereiro marca, desde o ano 2000, o Dia Mundial Contra o Câncer. A efeméride destaca aspectos centrais nos esforços para o controle da doença em nível global. O câncer ocupa o posto de segunda maior causa de mortes, com crescimento regular no número de casos em escala internacional e nacional. Representa um dos principais desafios à medicina e à saúde pública no século XXI, além de possuir uma forte presença em nossa vida cotidiana, seja na dimensão concreta do adoecimento, seja no imaginário. Neste ano, o tema selecionado para a data é “Fechar a lacuna no cuidado”, ressaltando os inúmeros problemas e gargalos existentes no acesso à atenção oncológica em todo o planeta.
Desafios resultam de problemas nas interações entre sociedade e câncer
O impacto da pandemia de Covid-19 no cuidado de pacientes oncológicos deve ser considerado (Souza Mello et al., 2021). Mas a maior parte dos desafios no enfrentamento da doença resulta de problemas historicamente estabelecidos nas interações da sociedade com o câncer. Um aspecto inicial a ser colocado é a complexidade dos tumores cancerosos e as limitações da medicina em lidar com a multiplicidade de tipos de adoecimento por câncer. É notório o desenvolvimento de tecnologias diagnósticas capazes de identificar lesões pré-cancerosas ou mesmo genes que ampliam o risco da formação de um tumor. Destaca-se também a combinação de procedimentos terapêuticos sofisticados que se adequem a vários tipos de câncer (caso mais recente da medicina de precisão). Mesmo assim, a doença ainda é traduzida em pesada carga para os serviços de saúde e em sofrimento para muitas pessoas doentes.
A ideia de que “o câncer é curável se descoberto cedo” foi estabelecida no Brasil em meados do século XX (Araújo Neto, 2019). Moldou a forma como lidamos com a doença, gerando expectativas em relação à eficácia de testes e tratamentos e estruturando o cuidado oncológico em torno de grandes hospitais especializados. Identificar o câncer em estágios iniciais, entretanto, tem se mostrado um grande desafio para a medicina e saúde pública desde o início das ações de luta contra a doença. Sobretudo, há dificuldade em obter os equipamentos (os quais ocupam grandes parcelas dos orçamentos hospitalares), em realizar os testes, acompanhar os pacientes após os resultados e, principalmente, dar continuidade ao tratamento. Esses problemas estão presentes mesmo em tipos de câncer cujo diagnóstico precoce é plenamente viável e em que a trajetória brasileira possui importantes contribuições, caso do câncer do colo do útero (Teixeira, 2015).
Modelo adotado no país gera limitações de acesso e de qualidade
Em termos de políticas públicas, nossos desafios também possuem longa data. Principalmente devido ao modelo de atenção constituído a partir da Campanha Nacional Contra o Câncer entre os anos 1930 e 1960. Em resumo, predominou no Brasil, por muitas décadas, um formato em que o Estado repassava recursos a grupos filantrópicos visando à construção e manutenção de hospitais especializados em grandes cidades. Se, por um lado, essa diretriz possibilitou a criação de uma rede hospitalar forte; por outro, fez com que a elaboração de uma rede complexa e integral de serviços para o controle do câncer não estivesse no foco das políticas do setor. Ainda após a criação do SUS, com programas de prevenção, de melhoria da qualidade diagnóstica, de treinamento profissional e de construção de centros de tratamento, a atenção oncológica tem encontrado grandes limitações de acesso e de qualidade no país.
Já na década de 1960, alguns cancerologistas – termo utilizado à época para se referir a especialistas em câncer – apontavam para o impacto das desigualdades sociais na incidência da doença e nas condições de acesso aos serviços de cuidado. Antes considerada um mal que simbolizava o progresso civilizatório e o desenvolvimento urbano e industrial, uma “mazela do progresso”, o câncer passava a ser considerado um problema sanitário complexo e socialmente determinado (Araújo Neto e Teixeira, 2017). O desenvolvimento de estudos epidemiológicos sobre câncer no Brasil nos anos 1980 e 1990 apontaram com nitidez os gradientes de desigualdade presentes na distribuição da doença.
Desigualdade precisa estar no centro da atenção oncológica
Somando uma estrutura de atenção oncológica repleta de limitações a determinantes sociais marcados pela desigualdade, o desafio de “fechar a lacuna do cuidado” aos doentes de câncer é bem maior do que a efeméride pode alcançar. É preciso reformular uma visão restritiva da doença que imputa à inovação tecnológica e ao avanço terapêutico o papel de resposta ao problema do câncer. Sem diminuir a importância da tecnologia nos diferentes níveis de cuidado, é necessário fortalecer ações de prevenção em perspectiva coletiva, enfrentando aspectos mais graves e estruturais que resultam no aumento de casos e mortes por câncer. São exemplos a exposição a agrotóxicos, a carência alimentar e dificuldade de acesso a serviços de saúde nos níveis primário e secundário. Para que se pense efetivamente em controle do câncer, é preciso colocar a desigualdade no centro da atenção oncológica.
Referências
Araújo Neto, Luiz Alves; Teixeira, Luiz Antonio. De doença da civilização a problema de saúde pública: câncer, medicina e sociedade brasileira no século XX. Boletim do Museus Paraense Emílio Goeldi – Ciências Humanas, v. 12, n. 1, 2017.
Araújo Neto, Luiz Alves. Prevenção do câncer no Brasil: mudança conceitual e continuidade institucional no século XX. Tese de doutorado – Casa de Oswaldo Cruz, Fiocruz. Rio de Janeiro, 2019.
Souza Mello, Tomás de et al. Covid-19 and cancer: an extensive review. Brazilian Journal of Oncology, v. 17, 2021.
Teixeira, Luiz Antonio. “O controle do câncer do colo do útero no Brasil”. In: Teixeira, Luiz Antonio (org.). Câncer de mama e colo do útero: conhecimentos, práticas e políticas. Rio de Janeiro: Outras Letras, 2015.
Sobre o autor
Luiz Alves Araújo Neto é Historiador, bolsista de pós-doutorado pelo PPGHCS, com bolsa da FAPERJ (Pós-doutorado Nota 10), e pesquisador no Observatório História e Saúde.
Como citar este texto
ALVES, Luiz. Os desafios históricos e contemporâneos da luta contra o câncer. Site do Observatório História e Saúde – COC/Fiocruz, 20XX. Disponível em: <https://ohs.coc.fiocruz.br/posts_ohs/os-desafios-historicos-e-atuais-da-luta-contra-o-cancer/>. Acesso em: XX de xxx. de 20XX.
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