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Para ver nas férias: série de TV sobre Atenção Primária à Saúde

06/01/2022

A grande mídia exerce considerável influência em como as pessoas apreendem as questões de saúde, impactando suas práticas cotidianas. A Saúde Coletiva, o Sistema Único de Saúde (SUS) e, em particular, a Atenção Primária à Saúde (APS) encontram ainda reduzido espaço nesse âmbito. Buscando preencher essa lacuna foi produzida a série médica televisiva “Unidade Básica”, transmitida em 2016. O presente estudo investiga limites e potencialidades no diálogo entre a Saúde Coletiva e a comunicação na grande mídia, tomando como base a produção de “Unidade Básica”. Realizou-se uma pesquisa qualitativa, de caráter compreensivo-interpretativo, sendo a primeira autora uma observadora participante. O material empírico foi interpretado à luz de conceitos considerados estratégicos para a Atenção Primária (AP) e a Saúde Coletiva. Observou-se que alguns conceitos foram potencializados no processo de criação da série, enquanto alguns se mostraram especialmente desafiadores para a comunicação, em particular o conceito de integralidade.

Grande mídia e comunicação sobre Saúde Coletiva e Atenção Primária

Introdução

A comunicação é um dos grandes desafios para reconstruir de maneira crítica as práticas de saúde, especialmente quando se visa alcançar um público ampliado por intermédio da grande mídia, orientando-se por valores e concepções não hegemônicas e pouco familiares ao senso comum.

A série médica “Unidade Básica”, televisionada em setembro de 2016, pelo canal Universal Channel, retratou em oito episódios o dia a dia de uma Unidade Básica de Saúde (UBS), tendo como personagens principais profissionais de saúde e pacientes com seus dilemas e desafios. Buscou-se construir uma abordagem sobre o universo da saúde e os processos saúde-doença-cuidado diferenciada daquelas hegemonicamente retratadas pela grande mídia. A primeira autora do presente estudo, médica e sanitarista, participou de todo o processo de construção da série, tendo, portanto, lugar privilegiado na apreensão dos fatos e dos processos relacionados a essa construção.

Sabe-se que as séries médicas televisivas (medical dramas) têm sido sucesso há várias décadas e em muitos países do mundo. Turow1 mostra que, desde a década de 1950, existem representações ficcionais do universo médico, mas é a partir da década de 1960 que elas passam a fazer grande sucesso, em especial com as produções Dr. Kildare (NBC) e Ben Casey (ABC). Essas séries traziam a imagem do médico “galã” que, com toda sua autoridade, ditava as melhores condutas e hábitos a serem seguidos. Nessa época, a American Medical Association (AMA) revisava os scripts no intuito de garantir informações precisas e corretas e manter uma boa imagem dos médicos.

Desde então foram produzidos mais de 130 programas nesse formato, tendo algumas produções alcançado diversas temporadas, como ER (15) e Grey’s Anatomy (14). E apesar de existirem muitas modificações na televisão nesse período (com a TV a cabo e a multiplicação no número de canais), o prime-time dos principais canais americanos são dedicados a esse formato até os dias de hoje. Um estudo realizado com estudantes de Medicina e Enfermagem da Universidade Johns Hopkins mostrou que mais de 80% responderam ter assistido a dramas médicos televisivos no último ano2. O processo de hipermedicalização social e a busca do controle sobre a saúde e as pessoas vêm sendo apontados como parte da explicação desse fenômeno3.

Ye et al.4, em pesquisa sobre as séries médicas, analisaram 127 episódios de “Grey’s Anatomy” e “ER” (61 e 66, respectivamente). Os resultados mostraram uma grande predominância de doenças que têm como causa fatores biogenéticos (35,2% das 461 doenças identificadas) em detrimento de doenças com raízes socioestruturais (14,7%), entre elas a maioria resultante de violência e criminalidade. Com relação ao método diagnóstico, 43,5% tiveram exames radiológicos solicitados, tais como raio-x, tomografia computadorizada ou ressonância magnética; e como tratamento, 45,5% realizaram cirurgia e 39,9% utilizaram medicamentos. Por fim, a prevenção raramente foi mencionada, apenas duas vezes nos 127 episódios analisados.

Turow1 mostra que, apesar de nesses mais de sessenta anos terem existido algumas mudanças na abordagem das narrativas, com uma ênfase maior nas histórias pessoais dos médicos e não mais na dos pacientes, os cenários, personagens e plots escolhidos praticamente se mantiveram os mesmos.

Com importantes exceções, os médicos da TV e os pacientes consistentemente têm sido tratados em hospitais. Nos hospitais da TV, os médicos têm dominado o cenário, os cirurgiões e outros especialistas têm sido especialmente admirados, os enfermeiros e os auxiliares têm tido relativamente pouco a fazer e normalmente têm sido os únicos profissionais de saúde, e a abordagem em equipe para os cuidados de saúde não tem existido. As doenças agudas que podem ser curadas de maneira bastante dramática têm sido os problemas mais importantes. O tratamento muitas vezes é realizado através dos equipamentos e medicamentos mais atualizados disponíveis em qualquer lugar1.

(p. 2. livre tradução)

Para esse autor, tais escolhas também refletem o conjunto de forças que atua sobre essas produções, que em geral reproduz a estrutura de poder presente na sociedade. Para os produtores existiria uma série de benefícios em se cultivar boas relações com organizações e empresas, com diversos tipos de recompensas políticas e financeiras. Empresas de equipamentos e de remédios são clientes dos canais e podem investir ou não em determinados programas.

O prestígio e o apelo estético das séries televisivas, não obstante todos esses atravessamentos de ordem econômica e política, talvez possam ser canalizados em outro sentido, abrindo caminhos para propostas de educação e comunicação em saúde entendidas nos termos mais amplos de uma ação cultural problematizadora e construcionista. Considerando-se que duas das maiores novidades experimentadas no campo das práticas de saúde em tempos recentes sejam a ênfase dada à Atenção Primária à Saúde (APS) na estruturação dos sistemas de saúde e a importância dos meios de comunicação na disseminação e na legitimação de ações de saúde em escala coletiva, será de enorme relevância explorar o diálogo ainda tão incipiente entre ambas. A APS, abordada desde a perspectiva da Saúde Coletiva, poderia se tornar o tema de uma série televisiva, aos moldes dos medical dramas.

Uma questão que se coloca, porém, é: teriam os dramas médicos televisivos o mesmo apelo e a mesma força comunicacional caso se voltassem para outros referentes que não os cenários de atendimento de casos raros e centrados na figura do médico “todo poderoso”? E antes dessa, e em relação a ela: haveria espaço e interesse entre os produtores da grande mídia para abordagens centradas em princípios e conceitos relacionados não estritamente a situações clínicas individuais, mas à Saúde Coletiva mais amplamente, e a situações de prática situadas não na sala de emergência, mas no cotidiano de um serviço de Atenção Primária (AP)? Antes ainda: seriam tais princípios, conceitos e situações de práticas passíveis de transposição para a linguagem de uma série médica televisiva?

Instigado pelo desafio de construir o diálogo entre grande mídia e APS/Saúde Coletiva, um grupo interdisciplinar e intersetorial de profissionais formulou o projeto de uma série televisiva com esse enfoque, denominado “Unidade Básica”. O projeto, além de visar a série em si como produto, e dado o pioneirismo da iniciativa, se propôs a buscar respostas para as questões acima listadas. Todo o processo de construção da experiência passou, então, a ser estudado de uma perspectiva acadêmica, tendo gerado debates com especialistas, nacional e internacionalmente, uma tese de doutorado e publicações na imprensa leiga e na acadêmica.

No presente artigo focaremos apenas em parte o material produzido no conjunto das investigações, procurando centrar a discussão na busca de respostas à terceira questão acima. Nosso objetivo é “identificar quais princípios e conceitos de APS-Saúde Coletiva priorizados na construção da série televisiva apresentaram maior facilidade ou, ao contrário, maior resistência para serem transpostos em linguagem de uma minissérie televisiva”.

Metodologia

A análise do processo de construção de um produto artístico televisivo e seu diálogo com um campo de estudos, a Saúde Coletiva brasileira, trouxe-nos um conjunto de reflexões desafiadoras, especialmente relacionadas à perspectiva epistemológica e metodológica do estudo. Embora localizado na interface dos campos de Saúde e Comunicação, por se tratar de um produto artístico, fez-se necessária inicialmente uma aproximação às reflexões acerca do modo de ser próprio dos produtos artísticos, seus diferentes regimes de inteligibilidade e sua relação com a possiblidade de se produzir conhecimento.

Hans-Georg Gadamer, em “Verdade e Método”5, realiza uma crítica ao subjetivismo da estética, propondo uma nova maneira de se pensar no fenômeno artístico. Para Gadamer5, seria um erro reservar o lugar da razão apenas para as ciências, com seus métodos e experiências. Para esse autor o fenômeno artístico é tomado como referência para a crítica ao subjetivismo da estética e aos limites da ciência positivista como a única produtora de verdades. A arte, para ele, é uma região paradigmática para o entendimento do acontecimento hermenêutico. Ao pensar a relação entre estética e hermenêutica, propõe a ligação entre três conceitos: da arte, da história e da linguagem.

A linguagem constitui-se na viabilização da fusão de horizontes históricos, a intermediação entre eles. Ao recuperar a linguagem presente na arte como elemento do entendimento, percebe a obra de arte como sendo sempre um diálogo e um encontro com aquilo que somos, mas sempre inseridos em uma tradição. A tradição aqui é vista como fenômeno essencial para a compreensão, por meio do entendimento de que somos o tempo todo interpelados pelo passado que herdamos e pelas culturas nas quais estamos sempre imersos. Para Gadamer, na arte sempre estariam envolvidos processos interpretativos de busca do que a obra tem a nos dizer, aqueles mesmos que a produzem e aqueles que vêm a ser seus destinatários.

A reflexão sobre a experiência da linguagem é a expressão máxima do proceder hermenêutico, na medida em que aí também se verifica a sua conexão com a questão da verdade. A linguagem passa a ser vista como abertura sob a forma de produção de verdades, aqui entendida como desocultação (aletheia). A verdade é vista como uma revelação, o encontro entre aquilo que é familiar e o desconhecido.

Esta pesquisa, sob essa perspectiva e pelo olhar privilegiado da pesquisadora principal, que fez parte de todo o processo de criação da obra artística, buscou uma aproximação hermenêutica não com a obra em si, por meio de um lugar de intérprete, mas com o lugar de quem vivenciou a sua criação, identificando no processo de construção da linguagem quais fatores estiveram presentes e quais forças atuaram para a construção final do produto.

Desenho do estudo

Buscando explorar e compartilhar ativamente uma hermenêutica da experiência em estudo, foi realizada aqui uma pesquisa qualitativa, que procura interpretar fenômenos sociais (interações, comportamentos, etc.) pelos sentidos que as pessoas lhes dão, sendo comumente denominada pesquisa interpretativa6. Nesse tipo de pesquisa, frequentemente se empregam diversos métodos, com uma ampla variedade de práticas interpretativas interligadas e o objetivo de se conseguir compreender melhor o fenômeno observado.

A primeira autora foi uma observadora participante nessa pesquisa. A observação participante é um processo de investigação científica de um acontecimento social da qual o observador faz parte; ele está face a face com os observados e, ao participar da vida deles, no seu cenário cultural, constrói uma narrativa, uma espécie de “metanarrativa” sobre aquelas que se constroem na e sobre a experiência estudada. Assim o observador é parte do contexto sob observação, ao mesmo tempo modificando e sendo modificado por esse contexto7.

A pesquisa inteira buscou construir categorias interpretativas no diálogo entre as pré-compreensões e interesses de seus autores e o processo artístico, cotejando-se referências teóricas do campo da APS/Saúde Coletiva com a experiência de produção da série em si e de outros materiais realizados com base nessa experiência – anotações de observações de tipo etnográfico em caderno de campo e entrevistas com participantes do processo de produção da série. No presente artigo serão abordados não a série em si ou a totalidade do material empírico produzido, mas as confluências e os conflitos, encontros e desencontros entre os interesses comunicacionais que motivaram a produção da série e a linguagem/interesses que atravessam a produção de séries médicas televisivas.

Produção do material empírico

As observações e a produção de materiais empíricos da pesquisa envolveram todas as etapas de construção da série médica televisiva, agrupadas em três momentos: 1. Desenvolvimento da proposta; 2. Pré-produção, filmagem e edição dos episódios; 3. Divulgação e resultados iniciais.

Foram realizadas observações em diário de campo durante todas as três fases do processo acima apontadas. Além disso, também compõem o material empírico: a) Projeto básico da série (bíblia); b) Materiais produzidos nas oficinas de trabalho com vistas a ajudar a construção do roteiro; c) Roteiros e seus múltiplos tratamentos; d) Material das equipes de produção para preparação do “campo” das filmagens (equipe de arte, equipe de direção, equipe de fotografia); e) Os oito episódios da série; f) Material de divulgação da série produzidos pelo canal Universal Channel; g) Repercussões em mídia social durante o processo de exibição da série.

Foram realizadas também entrevistas semiestruturadas com atores-chave do projeto: Fabiano Gullane e Caio Gullane, produtores da série “Unidade Básica”; Caroline Fioratti, diretora da série; Carlos Cortez, diretor da série; Newton Cannito, criador e roteirista; e Paulo Barata, CEO (Chief Executive Officer) do canal Universal Channel no Brasil.

Como apontado acima, não haverá espaço para discussão de todo esse material no presente artigo, mas ele compõe o pano de fundo do processo compreensivo-interpretativo a ser aqui apresentado. O conjunto desse material está disponível para consulta em publicação anterior8.

Interpretação do material empírico

Por meio da divisão do processo de construção da série médica televisiva em etapas, e à luz do objetivo central desta pesquisa, analisou-se o material empírico produzido com base nas categorias interpretativas e nos conceitos do campo da APS/Saúde Coletiva privilegiados no estudo. Entre eles destacamos:

  1. A polarização entre diferentes racionalidades implicadas nas ações de saúde: presença de um discurso biomédico versus novas formas de se pensar o cuidado em saúde913
  2. Novas formas de se pensar a promoção à saúde e prevenção de agravos: o conceito de risco e suas relações com o quadro conceitual da redução de vulnerabilidades1416
  3. A presença de atributos da APS, tendo a integralidade como eixo norteador de suas ações1721

Parte-se do pressuposto que tais categorias/conceitos, ao longo do processo de construção da série televisiva, do ponto de vista comunicacional, foram ora potencializadas, ora limitadas, ou ficaram ainda completamente fora do horizonte. Por essa constatação, pretende-se utilizar as categorias interpretativas e os conceitos encontrados para uma melhor fundamentação dos fenômenos observados.

Aspectos éticos

Este projeto de foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (Número do Parecer 1.561.058).

Resultados e discussão

Notam-se tendências da comunicação na grande mídia que ora limitaram o diálogo com os conceitos produzidos pelo campo da APS/Saúde Coletiva brasileira, ora potencializaram o diálogo sob essa perspectiva. Tais tendências observadas podem ser analisadas por meio de três diferentes perspectivas: do contexto em que ocorreu esse processo, do processo de elaboração do conteúdo comunicado pela série e do processo de criação de sua linguagem estética.

Primeiramente, ao analisarmos o contexto mais geral, é importante situar que a iniciativa da criação desta série médica ocorre em um momento denominado biomidiatização22, com a presença cada vez maior do tema da saúde na mídia. Esse processo ocorre por uma coprodução entre profissionais da saúde e da mídia, em intensa relação com o mercado, para produção de conhecimento, seleção de informações a serem difundidas e escolhas de como e quando abordá-las e a melhor maneira de fazê-lo.

Conforme discutido por Habermas23, os processos comunicacionais permanecem muito mais inspirados no modelo comercial com a intrusão das leis de mercado na esfera da produção cultural do que de um real interesse coletivo. Com isso, passam a organizar todo um sistema de produção de bens simbólicos, sempre ajustado aos “públicos consumidores”24, constituindo decisivo e duradouro instrumento de dominação25. Expressam e constroem novas formas de poder, mais capilarizadas e difusas, interiorizadas e legitimadas pelos próprios sujeitos26.

Especificamente no caso das séries médicas ficcionais, nota-se um forte domínio simbólico-cultural de produções norte-americanas, marcado pelo discurso biomédico, com a centralidade e o uso crescente de modernos instrumentos biotecnológicos, bem como de recursos audiovisuais que enfatizam essa perspectiva. Tais formatos, sucesso em vários países no mundo desde a década de 1960, incluindo o Brasil, retratam majoritariamente o ambiente hospitalar, colocam a centralidade no trabalho médico em detrimento da equipe de saúde, e geralmente focam as doenças agudas e fazem uso de avançados recursos tecnológicos para a resolução dos casos1. Do ponto de vista das narrativas, de maneira geral privilegiavam os dramas intensos (emergências, doenças terminais) ou investigações de casos raros (procedure).

Mais recentemente, nota-se também a presença de uma estética hiper-realista, com base nas biotecnologias que buscam transformar os dramas dos corpos e da psique em sinais, signos e imagens, marcando o aparecimento do que Bentes27 denominou de uma bioestética. Também é possível verificar a influência de novas formas narrativas, as chamadas “narrativas complexas”28 que, para além dos efeitos especiais já conhecidos no cinema, trazem a estética operacional para o primeiro plano, os chamados “efeitos especiais narrativos”, chamando a atenção para a natureza construída da narração. Da mesma forma que os videogames e a internet, surge a necessidade por parte do público de compreender os procedimentos e um reconhecimento de que esse modo de expressão é acompanhado de protocolos específicos.

Esses elementos presentes nos formatos audiovisuais atuais nos mostram como os processos comunicacionais passam a moldar, com novos elementos, as formas de representação dos corpos e do processo saúde-doença-cuidado.

É nesse contexto que surge a série médica “Unidade Básica”, com base em reflexões advindas da inserção de uma de suas criadoras como médica em um serviço de APS, no contexto do Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro. Essas reflexões apontavam uma forte crítica a tais formatos hegemônicos e uma necessidade de se construir diferentes dimensões racional-cognitivas, bem como estético-afetivas sobre os processos saúde-doença-cuidado. A criação da série, portanto, surge em um contexto que podemos denominar de guerras de representação29, que passam a ocorrer com uma frequência cada vez maior, em parte possibilitadas pelo aparecimento de novas tecnologias facilitadoras da comparação das representações em escala “global”. Especificamente no contexto latino-americano, Xavier30 aponta a necessidade de se analisarem as representações por um contexto geral, em que a questão nacional e de mercado assumem uma significação de luta contra a colonização cultural.

Ainda do ponto de vista do contexto em que ocorreu esse processo, destaca-se também o cenário político brasileiro no período. Dos anos 2009 a 2016 (período que abarca desde o final do segundo mandato do governo Luís Inácio Lula da Silva até parte do segundo mandato do governo de Dilma Rousseff), foram criadas políticas públicas relacionadas ao audiovisual, com maior incentivo e regulação das TVs pagas, possibilitando o financiamento de obras independentes para TV, ao mesmo tempo estabelecendo obrigatoriedade de cumprimento de cotas de programação nacional.

Simultaneamente, nas políticas públicas de saúde, criou-se um conjunto de incentivos para o fortalecimento da APS, principalmente por meio da Estratégia Saúde da Família (ESF), fazendo que fossem priorizadas ações para valorizar esse nível de Atenção à Saúde. A necessidade de pensar a integralidade da saúde, de incorporar práticas assistenciais inovadoras, de organizar equipes multiprofissionais e de se considerarem as múltiplas dimensões presentes no processo saúde-doença faziam parte do conjunto de estratégias das políticas implementadas no período.

Do ponto de vista da elaboração do conteúdo da série, especificamente no início do processo de construção dos roteiros, houve uma grande necessidade de se dialogar com o gênero artístico da obra, entendido como “um certo funcionamento social das narrativas, um funcionamento diferencial e diferenciador, cultural e socialmente discriminatório, que atravessa tanto as condições de produção quanto as de consumo”24 (p. 183), principal responsável pelo processo de ativação da competência cultural dos públicos na televisão.

Essa necessidade de diálogo com o gênero artístico da obra trouxe para o processo um conjunto de estruturas exteriores e interiores das obras artísticas preestabelecidas31, tais como a presença de personagens-tipo e situações-tipo, a esquematização e a polarização na forma com que os conteúdos são apreendidos.

Por um lado, temos que o diálogo com esses formatos permitiu um reconhecimento e uma identificação por parte do público de padrões já conhecidos, o que pode ter sido um facilitador da comunicação com o grande público.

Também do ponto de vista da exequibilidade do projeto, a relevância do tema da saúde, aliada ao formato série médica para TV, foi o principal elemento que atraiu para a execução do projeto tanto produtores quanto o canal de TV. O histórico de sucessos internacionais e a baixa produção nacional foram questões-chave para esse interesse.

Por outro lado, esse conjunto de características preestabelecidas, no formato séries médicas, nessa etapa do processo, influenciou o conteúdo proposto, fazendo que houvesse uma forte centralidade nos personagens médicos com a manutenção da presença do “médico-herói”, a presença do romance entre protagonistas médicos, a pouca participação do restante da equipe de saúde e um diálogo com o formato procedure. Desse ponto de vista, podemos considerar que a fórmula série médica1 limitou um diálogo com o campo da Saúde Coletiva.

Ainda nessa etapa de elaboração do conteúdo, um importante elemento a ser considerado foi a possibilidade, no processo de realização de pesquisa para os roteiros, de se estabelecer um ativo diálogo com o campo da Saúde Coletiva brasileira, bem como com experiências concretas de implementação de APS no contexto brasileiro. Nessa etapa do processo, o encontro com pensadores, gestores, profissionais de saúde, visitas às UBS, observações in loco, bem como a realização de duas oficinas de trabalho, mostraram um conjunto instituído de saberes e práticas que guardavam, de maneira geral, bastante consenso sobre quais seriam as questões que deveriam ser retratadas em uma série sobre o dia a dia de uma Unidade de Saúde.

Especificamente sobre a comunicação desses conceitos no processo de elaboração do conteúdo, verificou-se que a necessidade de diálogo com formatos preestabelecidos acabou em certa medida privilegiando a comunicação de alguns conceitos em detrimento de outros. Por exemplo, a necessidade de estabelecer uma polarização entre protagonistas, típica desse tipo de construção artística, acabou por favorecer um diálogo com o primeiro eixo definido, a questão do conflito entre racionalidades. A inserção das diferentes racionalidades nas ações em saúde (discurso biomédico versus novas formas de se pensar o cuidado em saúde) foi representada pelos dois personagens principais da trama: Laura representando uma visão biomédica e Paulo, uma visão ampliada do cuidado em saúde. Esses personagens, em diversos episódios, representaram os dois polos de racionalidade nas ações em saúde, buscando demonstrar, no desfecho do episódio, a necessidade de existir uma mútua permeabilidade entre o técnico e o não técnico na construção do cuidado em saúde.

Outro formato preestabelecido, em consonância com as tradicionais séries médicas, o formato procedure, foi parcialmente seguido no processo de construção dos roteiros, mas aqui com diferente característica. Em vez de a investigação do episódio estar focada em uma doença rara e específica, o centro da investigação passou a ser as histórias de vida dos pacientes (suas crenças, seus traumas, sua rede familiar, seu contexto de moradia e trabalho, sua rede de apoio). Com isso, também um diálogo com o eixo das vulnerabilidades pode ser estabelecido, mostrando um conjunto de aspectos individuais e coletivos relacionados à maior suscetibilidade de indivíduos e comunidades a um adoecimento ou agravo16, buscando caracterizar, em casos concretos, uma maneira ampliada de se pensar o processo saúde-doença-cuidado.

Por fim, foi possível o diálogo com os elementos que caracterizam a APS, como a presença e as reuniões da equipe de saúde, as visitas domiciliares, as ações no território, entre outras. Na totalidade dos episódios construídos encontram-se presentes cenas que representam os atributos desse nível de atenção.

Por outro lado, a necessidade de se manter a centralidade da trama em dois personagens principais, médicos, trouxe dificuldades para uma interlocução mais efetiva com alguns conceitos dialogados. Ao se pensar em um cuidado mais ampliado e, em especial, na integralidade das ações, envolvendo uma apreensão enriquecida das necessidades do sujeito, surge como elemento central o trabalho multiprofissional que não foi bem retratado nos roteiros. Aliada a esse fator, a impossibilidade de representação dos outros níveis de atenção prejudicou especialmente a comunicação do conceito de integralidade no que diz respeito à integração entre diversos níveis e serviços do setor saúde e deste com ações intersetoriais.

Outro elemento, objeto de muita reflexão durante essa fase, foram as ações desencadeadas na resolução dos casos pelo personagem Paulo, que também refletiam um modelo “médico-herói” das tradicionais séries médicas, ao mesmo tempo já com uma influência das narrativas complexas28, em que os personagens passam a ser multifacetados, apresentando falhas de caráter, com comportamentos propositadamente inusitados para o público.

As ações relacionadas a resoluções dos casos, em especial as referentes ao personagem dr. Paulo, embora diferentes das apresentadas pelas tradicionais séries médicas, cuja centralidade está no uso de recursos de imagem, de farmacológicos e da alta tecnologia, em muitos casos, apresentavam-se também de maneira pouco dialógica e, não raro, bastante impositiva. A comunicação dos novos modos de se pensar as ações de prevenção de agravos e promoção da saúde, com a construção dialógica de projetos terapêuticos singulares e coletivos, com respeito à autonomia e à escolha dos pacientes, ficou em alguns casos prejudicada pelo caráter “heroico” e “excêntrico” construído para esse personagem. A presença de uma diferente perspectiva moral, orientando a ação performática na linguagem televisiva, teve impacto direto aqui.

Na segunda etapa desse processo (pré-produção, filmagem e edição dos episódios), merece destaque o processo de criação da linguagem estética da série, conforme discutiremos adiante. Com relação ao conteúdo, foram determinantes as rotinas de produção23, com seus hábitos de trabalho, com exigências relacionadas, por exemplo, à rentabilidade do tempo de produção, o que limitou, em diversas ocasiões, um maior diálogo com as questões do campo.

Por fim, na terceira etapa (Divulgação e resultados iniciais), teremos como elementos determinantes a estrutura e a dinâmica da produção televisiva, que já durante a edição dos episódios e durante a fase de divulgação da série têm como elementos fundamentais as estratégias de comercialização, buscando o melhor corte narrativo para a publicidade22. O primeiro slogan escolhido (“Dois médicos. Dois pontos de vista. Uma missão. Salvar vidas”), bem como uma das estratégias de anunciar os episódios focando as características clínicas e fisiológicas das doenças, exemplifica esse tipo de ação que, em geral, não traduzia os objetivos comunicacionais das premissas da série.

Sobre o processo de criação de uma linguagem estética para a série, notou-se um intenso, inovador e profícuo diálogo com os conceitos do campo da Saúde Coletiva. Segundo Caroline Fioratti, diretora da série, ao mesmo tempo que se buscou um retrato próximo ao ambiente real de uma UBS, também foram considerados elementos estéticos que traduzissem melhor os conceitos da série. A intenção não foi ser o mais realista possível, e sim buscar traduzir em sensações os conceitos que se desejava comunicar, por meio de recursos técnicos e estéticos. Para Caroline:

Tudo tem que ser pensado junto… Como vai ser esta UBS? Vamos colocar bastante janela? Porque as janelas vão dar a sensação que a gente está olhando para aquelas salas, sem necessariamente estar dentro daquelas salas… Vai dar também uma amplitude pro lugar, uma amplitude e uma unificada, como se aquele lugar não fossem cubículos, coisas independentes, estão juntos… Tudo pensando na premissa… O que é uma UBS e o que é saúde da família? Como isto se materializa no espaço? Poderiam ser espaços isolados, mas para gente não é legal, porque a gente está isolando as histórias… A gente quer que as coisas estejam conectadas… Que as pessoas todas estejam conectadas… Porque se a gente reproduzir uma realidade, vai ser uma sala fechada, sem janela e isto diz menos sobre a conexão da comunidade do que uma sala com várias janelas… Então, são pequenas escolhas que sempre levam para premissa… Não tem a ver com ser mais realista… Tem a ver com a sensação que você vai passar pro público, que é a sensação que você quer… de comunidade […]. Às vezes o realismo ele atrapalha porque ele cria outras sensações que não é a que está ligada a sua premissa, ao seu discurso…

(Caroline)

No processo de decupagem também a escolha de onde focar ou desfocar a câmera, o ritmo, tudo foi escolha com o sentido de olhar para o ser humano, para seus sentimentos e angústias; difere ainda de algumas séries médicas tradicionais, cujo foco da câmera, em geral, está voltado para a situação de emergência ou para o procedimento realizado. A escolha de uma “luz quente” como elemento para favorecer o momento de um insight, de uma revelação, de abertura para o cuidado, ou ainda a escolha de uma mesma palheta de cores para roupas, cenários e paredes, garantindo um tom uniforme, uma impressão digital para aquela representação, todos foram elementos que buscaram a tradução de conceitos presentes na premissa da série. As cenas de passagem, mostrando a vida na comunidade, a vinheta de abertura, que buscou um diálogo com as imagens médicas e cenas da metrópole, assim como as músicas escolhidas, todas foram escolhas técnico-estéticas que favoreceram a comunicação dos conceitos, aqui não de uma forma verbal, mas sim por meio das sensações produzidas.

Considerações finais

Se ao final do breve e sintético percurso deste artigo sobre a experiência da produção de “Unidade Básica” voltarmos à sua questão de fundo e a seu objetivo, devemos responder positivamente: sim, é possível transpor princípios, conceitos e situações de prática da APS/Saúde Coletiva para a linguagem de uma série médica televisiva. E um procedimento que se mostrou favorecedor dessa possibilidade foi não exatamente a proposição de uma linguagem completamente outra na “guerra de narrativas”, mas a ressignificação de alguns de seus elementos-chave.

O principal exemplo disso foi a possibilidade de contrastar um modelo de raciocínio diagnóstico e de abordagem terapêutica excessivamente biomédico-centrado com um modelo de cuidado mais integrador e sensível ao social, na figura de dois perfis polares de profissionais e seus sucessos e insucessos diante das complexas situações que se apresentam no cotidiano da AP. A percepção do contraste entre essas abordagens fica facilitada pela sua “encarnação” nos personagens e processos decisórios concretamente demandados em uma Unidade Básica. A clássica fórmula de produção de antagonismos entre os protagonistas das séries favoreceu, nesse caso, o diálogo pretendido.

Por sua vez, o próprio enfoque nas demandas de uma Unidade Básica permitiu deslocar, da gravidade fisiopatológica de uma entidade clínica para a complexidade sociossanitária de uma condição de adoecimento, o núcleo de tensão dramática que organiza o episódio na sua estrutura narrativa tradicional. Esse deslocamento, ao tempo em que logra conquistar mais facilmente a compreensão do grande público, identificado com essa estrutura narrativa, convida-o à percepção de uma outra esfera possível de pensar os processos de saúde-doença-cuidado. E aqui, por exemplo, a introdução da lógica da vulnerabilidade social e programática fica favorecida.

Dificuldades também foram explicitadas. Algumas ligadas à estrutura narrativa mesma do modelo série médica. Por exemplo, como valorizar nas tramas do enredo a necessidade da integralidade da atenção e do trabalho da equipe multiprofissional (e do saber interdisciplinar) em um formato que se baseia no protagonismo individual do herói? Ainda assim, foi possível introduzir alguns elementos novos para as narrativas tradicionais, como reuniões de equipe, elaboração de mapa familiar e sociograma, visita domiciliar.

Outros limitantes observados foram de caráter mais conjuntural. Os recursos disponíveis em Unidade Básica limitaram o setting das filmagens ao cenário da UBS e algumas cenas em comunidade ou domicílios. A inclusão de outros espaços cenográficos permitiria ampliar a visão sobre o Sistema de Saúde como um todo, como ambientes hospitalares, Capes, Ceccos, etc., o que ajudaria a discussão sobre a integralidade.

Mas talvez o mais relevante da experiência tenha sido a criação de uma nova estética para essa série, que buscou identificação com o grande público não pela repetição dos padrões narrativos importados das séries americanas, mas por uma ambiência física e emocional mais próxima do cotidiano de seu público potencial. E isso não por uma preocupação com a descrição realística de uma Unidade Básica, mas pelo compromisso com uma atmosfera que dialogue com valores almejados (e alcançáveis) pelo projeto de uma APS/Saúde Coletiva desejada.

Da mesma forma que os processos comunicacionais na atualidade se utilizam de novos recursos estéticos e narrativos para estabelecer a hegemonia comunicacional do mercado24, centrada no discurso biomédico e no uso dos modernos recursos biotecnológicos e audiovisuais, faz-se necessária a produção de conhecimento nessa área para a comunicação de uma diferente perspectiva.

Será esse um caminho a ser explorado para tornar a APS, o SUS e a Saúde Coletiva uma experiência que chegue não prioritariamente pelo racional-cognitivo, mas pelo estético-afetivo? Seria possível construirmos uma nova linguagem estética/narrativa/audiovisual que nos aproxime daquilo que queremos comunicar?

Todas essas são questões que merecem ser mais bem exploradas por novos estudos, assim como por novas intervenções audiovisuais, para que se amplie o entendimento sobre quais são as potencialidades e os limites em se comunicar conceitos do campo da APS/Saúde Coletiva de maneira geral, em especial aqueles em diálogo com o audiovisual e a grande mídia.

Financiamento
Pesquisa financiada com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do estado de São Paulo (Fapesp) PROCESSO 2015/24160-2.
Petta HL, Ayres JRM, Teixeira RR. Grande mídia e comunicação sobre Saúde Coletiva e Atenção Primária: o desafio da produção da série televisiva “Unidade Básica”. Interface (Botucatu). 2021; 25: e200607 https://doi.org/10.1590/interface.200607

Referências

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