Duas mãos segurando as grades de uma cela
Segurança Pública, Atenção Psicossocial e o Covid-19 nas prisões: entrevista com Pedro Paulo Bicalho

12/09/2020

Por Allister Dias e Felipe Muñoz

BLOG

Entrevista

Compartilhe

A partir da segunda metade do século XX, com o surgimento da chamada nova história, nós historiadores passamos a investigar não somente os grandes nomes do passado nacional e internacional, mas também os personagens até então excluídos da história tradicional: mulheres, operários, presos, doentes mentais, loucos criminosos, etc. Pessoas anônimas e seres humanos outrora vistos como sem importância histórica, passaram para o centro da narrativa, como no livro de Michel Foucault “Eu, Pierre Rivère, que degolei a minha mãe, minha irmã e meu irmão”[1] e em muitos outros da produção historiográfica recente. Nas ciências sociais e na psicologia, esforços similares deram evidência aos segmentos excluídos e vulneráveis da sociedade: indígenas, refugiados, populações periféricas e faveladas, assim como negros, mulheres e populações LGBTI, vítimas do preconceito e da violência. Dentre os sujeitos invisíveis aos olhos da sociedade, a população carcerária talvez seja aquela que o grande público parece menos se importar.

O encarceramento é fenômeno com historicidade, ou seja, uma prática punitiva com significações e objetivos distintos a depender do contexto. De todo modo, a consolidação no século XIX da prisão moderna como lugar por excelência da punição, defesa social e correção, foi acompanhada pelo revivescente debate sobre sua reforma. A eternamente debatida reforma penal e penitenciária. Estudos no bojo das ciências humanas, em especial aqueles provenientes do campo interdisciplinar da Criminologia Crítica, contestam a expansão, sobretudo a partir dos anos setenta, do “estado penal” (em detrimento do esfacelamento do “estado previdenciário”), do “estado de polícia” e dos processos de “criminalização”, razão de ser do encarceramento em massa que se assiste desde então em países como os EUA e o Brasil. O “estado penal” e o punitivismo seletivo (em termos de classe, raça, cor, localidade, etc.) que o marca, irmão siamês do consenso neoliberal, tende a destruir o histórico ideal correcionalista de reabilitação do sujeito aprisionado, como ensinam David Garland e Loïc Wacquant, nas suas vastas produções intelectuais.

É frente a essa realidade que psicólogos e assistentes sociais cumprem papéis importantíssimos junto às populações privadas de liberdade. Tais profissionais desenvolvem também estudos e pesquisas sobre as diferentes questões psicossociais que se revelam nas instituições prisionais (para adultos) e socioeducativas (para jovens e adolescentes), bem como nos Hospitais de Custódia e Tratamento – antigos manicômios judiciários, onde são cumpridas as chamadas medidas de segurança.[2] Tais estudos mostram que os encarcerados não são apenas condenados penais, mas, sobretudo, indivíduos que tem cerceados os seus direitos constitucionais, civis, sociais e humanos.

Embora nosso país tenha hoje a terceira maior população carcerária do mundo, o desejo de aprisionamento da sociedade parece insaciável. Em dez anos, de 1994 a 2004, a população carcerária no Brasil quintuplicou. Em fevereiro deste ano, o Brasil totalizava 773 mil pessoas encarceradas, estando 45,92% delas em regime fechado. Os presos provisórios – sem sentença penal condenatória – representavam 33,47%, isto é, 253.963 pessoas.[3] E muitos desses presos provisórios estão há vários anos aguardando julgamento em delegacias ou em locais inapropriados. Como se sabe, o sistema prisional brasileiro e as unidades socioeducativas operam em alto grau de superlotação. Ao invés de investir em políticas públicas e direitos, visando a redução das desigualdades sociais e a ampliação da cidadania, o Estado brasileiro, de governo a governo, prefere resolver os problemas da Segurança Pública apenas com polícia e restrição de liberdade, bem aos moldes de um “estado penal”. E não se trata aqui só de repressão, ou da tão propalada “defesa social”, mas na produção, em sociedades assim, de conceitos, expectativas, discursos, instituições e subjetividades de operadores do direito penal cada vez moldados para o “estado de polícia”. A situação, que já era dramática antes da pandemia de Covid-19, tornou-se ainda pior.

Visando atenuar o problema e garantir os direitos fundamentais da população carcerária, parcela da Justiça brasileira vem tomando uma série de medidas para diminuir a superlotação [4] e obrigar os governos a adotarem ações para prevenir a contaminação de presos pela Covid-19.[5] Isso, porém, em meio a muitas negativas por esta mesma Justiça de concessão de prisão domiciliar para presos que fazem parte do chamado “grupo de risco” para a covid-19, em especial presos provisórios e em medidas de segurança.

Dando continuidade ao debate sobre Covid-19 conduzido pelo Blog do Observatório História e Saúde, da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, realizamos uma entrevista com o professor Pedro Paulo Bicalho da UFRJ,[6] com o objetivo de discutir o tema da Covid-19 nas prisões e as subsequentes questões psicossociais da atualidade. Bicalho vem se dedicando, há mais de 10 anos, ao estudo dos processos de criminalização – que não devem ser confundidos com o processo de incriminação decorrente do processo judicial – responsáveis pela estigmatização de populações que acabam vivendo em condições de segregação e vulnerabilidade. Dessa forma, orientou e coordenou diversas pesquisas sobre a populações encarceradas no sistema prisional e socioeducativo do Brasil.

AD e PFM: Em maio deste ano, você assinou, junto com duas coautoras, um editorial dos Arquivos Brasileiros de Psicologia sobre a pandemia de COVID-19 e a crise de investimentos em ciência e saúde.[7] Nele, vocês citam um relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) e um documento da FIOCRUZ, ambos sobre a atenção psicossocial. Passados três meses desse editorial, que avaliação você faz sobre a saúde mental na pandemia?

PPB: Escrevemos o editorial dois meses após a confirmação da transmissão comunitária no Rio de Janeiro e da primeira morte em decorrência da pandemia do coronavírus. A OMS [Organização Mundial de Saúde] sugeriu que o mundo deveria parar e se isolar para lentificar o processo de contaminação e não sobrecarregar os sistemas de saúde. Entretanto, diante de sistemas de saúde já sobrecarregados e sucateados, o que fazer? Nos últimos anos, desde a aprovação da Emenda Constitucional 95, sofremos com a intensificação do sucateamento dos sistemas de saúde, fechamento de leitos e hospitais em todo o país, com sérias consequências para o cuidado psicossocial na rede pública, onde atuam cerca de 60 mil psicólogas(os) no país. Para muitos, o colapso social já começava analisando essa questão. Mas, é importante ir além: diante da realidade continental e desigual do Brasil, na qual muitos trabalham informalmente para garantir diariamente o que comer, como adotar tais medidas de restrição e ao mesmo tempo garantir o cuidado psicossocial, principalmente diante de um governo negligente? Como afirma a psicóloga boliviana María Galindo, em Sopa de Wuhan [8]: na América Latina o coronavírus escancara a ordem colonial do mundo. “Aqui a sentença de morte estava escrita antes da covid chegar em avião de turismo”. Talvez, numa análise mais profunda, possamos descobrir que, no Brasil, a pandemia nunca foi sobre os mais ricos. Na verdade, ela não é sobre os mais pobres também, mas evidencia os requintes de crueldade que a nossa forma de reprodução social da vida imprime na sociedade. E não é possível desvincular atenção psicossocial de desigualdade social, problemática na qual o Brasil encontra-se na 10ª posição em comparação com outros países do mundo, verificando-se no ano de 2019 ampliação da desigualdade entre os extremos da distribuição da renda do trabalho, de acordo com recente relatório do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA) [9]. Para a manutenção da ordem capitalista, o darwinismo social ainda permeia como ideologia explicativa a esse fenômeno e atinge maciçamente os pobres, os negros e a classe trabalhadora, historicamente explorados pelo colonialismo. Sobreviverão aqueles mais “fortes”, capazes de adaptar-se ao ambiente (e, neste momento, sobreviver à pandemia). O coronavírus foi tido inicialmente como “um vírus democrático” – expressão que compôs muitos escritos e noticiários televisivos no início da disseminação. Uma enfermidade amplamente alastrada que atingiria a todos e de maneira igualitária; que evaporou a segurança da nobreza e, o medo da sua contaminação, extrapolou as fronteiras territoriais e econômicas, com uma ideia de comunhão, de um possível mundo mais solidário onde o vírus venceria o capital e a competitividade nele emaranhada. “Este vírus é democrático e não distingue entre pobres e ricos ou entre estadista e cidadão comum”, afirmou o esloveno Slavoj Zizek em Sopa de Wuhan [10]. Como um vírus pode ser democrático em um país tão desigual? O cuidado psicossocial esbarra, neste país, com a estrutura material, financeira e social, com a ausência de condições básicas para seguirem prescrições alimentares, de isolamento, de higiene, sem contar que as informações acerca dos cuidados, que muitas vezes chegam enviesadas e desmoralizam a gravidade da doença, tratando-a como uma “gripezinha”. Não é possível pensar a atenção psicossocial neste país desvinculada de uma análise profunda da desigualdade que historicamente nos estrutura. As desigualdades sociais aqui discutidas possuem íntimas relações com processos políticos históricos e contemporâneos, e também com a construção da subjetividade da nossa população. Tais agravos existem desde muito antes da pandemia e existirão ainda após seu fim. Dessa forma, é possível que a vivência da pandemia no Brasil potencialize uma crise sem precedentes. A reinvenção da vida, necessária para todas e todos nós, passa por uma dimensão de cuidado. E, em tempos de isolamento, a atenção à saúde mental e o cuidado psicossocial tornam-se prioridade entre os que vivenciam uma crise dentro de outras existentes.

AD e PFM: Nos últimos dez anos você investigou os processos de criminalização, a partir de adolescentes em medidas socioeducativas, presos provisórios em delegacias e pessoas encarceradas após condenação judicial. Qual é a situação dessas pessoas durante a pandemia? Como você analisa a letalidade no sistema prisional em comparação com a população geral?

PPB: Não é por acaso que no Brasil, diferente de países como Itália, Portugal, Inglaterra e França, a concentração dos casos de letalidade por coronavírus não são marcadas pelas diferenças de faixa etária. Aqui, o que determina quem vive ou morre em decorrência das complicações do vírus são fatores socioeconômicos, com um componente racial muito forte entre os “determinantes de risco”. No início do mês de maio, o Complexo de Favelas da Maré atingia uma letalidade de 30,8% dos contaminados, enquanto o bairro do Leblon acumulava uma taxa de 2,4%.[11] Há uma série de fatores que impedem o acesso ao diagnóstico correto e ao tratamento adequado. Não é por acaso que a primeira morte no Rio de Janeiro foi de uma empregada doméstica, contaminada pela sua patroa que esteve na Europa pouco antes da pandemia. Dados apontam que os bairros com mais negros concentram mais mortes que os bairros com menos negros, em maioria absoluta.[12] Ainda assim, o Ministério da Saúde responde que não há informação de quantos casos foram confirmados por raça/cor, nem o número de testes a partir dos grupos raciais. É importante marcar, nesse momento, que a subnotificação é muito forte, e pode ser ainda maior no sistema prisional, que apresentou nestes meses de pandemia uma série de episódios de rebeliões e motins, muitos motivadas por dias seguidos com ausência de água, como registrado em 22 de abril no Presídio Francisco Oliveira Conde, no Acre, resultando 61 pessoas feridas. Sem uma política efetiva de saúde para esta população, esta será a mais afetada. Como ressalta o filósofo português José Gil no texto “O Medo”[13], a pandemia não é sobre o medo da morte, mas sobretudo o medo da morte absurda.

AD e PFM: Você é Conselheiro-presidente do Conselho Regional de Psicologia-Rio de Janeiro (CRP-RJ) e, representando o Conselho Federal de Psicologia (CFP), compõe o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (CNPCT). Como foi a sua atuação no CNPCT ao longo da crise sanitária de COVID-19?

PPB: A atuação no CNPCT, no contexto em que o mesmo é presidido pela atual ministra do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, tem sido muito difícil. Membros da sociedade civil do CNPCT têm demonstrado preocupação com posicionamentos da ministra, especialmente após o cancelamento da reunião que ocorreria nos dias 27 e 28 de abril de 2020, para tratar do aumento da contaminação pela covid-19 dentro do sistema carcerário, revelando-se como situação de tortura. A falta de diálogo e a obstrução do trabalho têm se tornado preocupantes durante o momento de pandemia, mas têm sido a tônica na atual gestão, e não somente na pandemia. O CNPCT é a instância responsável por avaliar e monitorar junto com o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) os espaços de privação de liberdade no país, prevenindo e denunciando práticas de tortura e de tratamento cruel, desumano e degradante nesses espaços, os quais compõem o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. Em que pesem as dificuldades de atuação, é importante destacar a Nota Pública Conjunta nº1/2020 do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e do Conselho Nacional dos Direitos Humanos, emitida no início da pandemia, que reconhece a relevância da Recomendação 62/2020 do CNJ [Conselho Nacional de Justiça] e suas medidas de orientação aos tribunais e magistrados competentes da adoção de medidas preventivas à propagação do novo coronavírus no sistema prisional e socioeducativo destacando, principalmente, a precariedade e a superlotação dessas instituições. Ao longo dos meses de distanciamento social o CNPCT tem acompanhado a efetivação da referida resolução, com números que nos desafiam: das 755.274 pessoas presas no Brasil, contabilizadas em 30 de abril, passamos a 748.009 em 30 de agosto, o que revela uma incidência insignificante da recomendação 62 à necessidade de desencarceramento durante a crise sanitária. E, ainda, a constatação de que foram realizados 6.908 testes de covid-19, o que representa um total de 7% de pessoas testadas no sistema.

AD e PFM: Em seu artigo, que está para ser publicado [14], você fala sobre uma decisão do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), Ofício 864/2020, que contraria as medidas sanitárias de desencarceramento do CNJ. O que determina o Ofício 864/2020 e por que ele ataca princípios humanitários e diretos das pessoas privadas de liberdade?

PPB: O Subcomitê das Nações Unidas para Prevenção da Tortura emitiu recomendações para proteção das pessoas privadas de liberdade durante a pandemia, apontando medidas que considerem a redução da população carcerária. Concomitantemente, o Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos chamou a atenção para a precária condição das prisões nas Américas, ressaltando os problemas de superlotação, condições anti-higiênicas e a falta de acesso adequado à saúde. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), para a elaboração de suas orientações, considerou –  além da declaração de pandemia da OMS –  também a portaria 188/GM/MS, do Ministério da Saúde, que declarou “estado de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional”, incentivando a adoção de medidas sanitárias, dado o alto índice de transmissibilidade do vírus, dirigidas à saúde das pessoas privadas de liberdade e do agentes públicos e visitantes; além de reforçar o dever do Estado de assegurar atendimento em saúde para as pessoas privadas de liberdade. Além disto, o CNJ também considerou a decisão do STF [Supremo Tribunal Federal] de 2015 na ADPF [15] 347, que considerou o sistema penitenciário brasileiro como “estado de coisas inconstitucional”. Nesta decisão, o STF reconheceu a superlotação e a precariedade das condições do sistema penitenciário e incentivou a formulação de estratégias que visassem melhorias processuais e infraestruturais. A referida norma do CNJ recomenda aos magistrados a adoção de políticas de desencarceramento, nos sistemas prisional e socioeducativo. Nesse cenário, a ideia indigna levantada pelo DEPEN – departamento submetido ao Ministério da Justiça e Segurança Pública – foi a de utilizar contêineres para abrigamento de pessoas presas contaminadas, com suspeita de contaminação ou que pertençam ao grupo de risco [para Covid-19]. Tal medida foi apresentada no Ofício nº 864 enviado, em caráter de urgência, ao Presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), órgão da execução penal responsável pela implementação, em todo o território nacional, de políticas criminais e penitenciárias, bem como a execução de planos nacionais de desenvolvimento quanto às metas e prioridades da política a ser executada. O Ofício 864/2020, surpreendentemente, não só considera seu uso temporário, mas também como “legado para as unidades prisionais, para emprego como alojamentos ou até mesmo para criação de novos espaços de saúde”. O uso de contêineres já vem sendo criticado e denunciado como forma de grave violação de toda a estrutura legal e constitucional que ampara os direitos humanos. São espaços ainda menores que muitas celas, expostos a intenso calor e que degrada, mais ainda, a dignidade daqueles que são submetidos à privação de liberdade. Uma nota técnica elaborada pelo Ministério Público Federal, pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro e outras 8 instituições, redigida pelo GT Interinstitucional Defesa da Cidadania, e encaminhado pela Procuradoria-Geral da República (PGR), indica que, ao contrário do pretendido, essas construções alternativas, objeto de proposta do DEPEN, aumentariam o risco de uma ampla contaminação em massa. O ofício do DEPEN pede, especificamente, a suspensão temporária das Diretrizes Básicas para Arquitetura Penal, a Resolução nº 09/2011 do CNPCP, qual foi publicada, principalmente, em consequência do fato de o Governo brasileiro ter sido denunciado no Conselho de Direitos Humanos [CDH] da ONU, em março de 2010, por uso de contêineres de ferro, com altas temperaturas e condições precárias no estado do Espírito Santo. A situação foi considerada crítica pela CDH da ONU e conclamou o Estado brasileiro a agir, sob risco de quebrar acordos internacionais.[16] Ao atentar contra a resolução nº 09/2011, o DEPEN, respaldado pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, não promoveu apenas o uso de contêineres e estruturas metálicas, mas atacou princípios humanitários pensados e construídos sob amplo e multidisciplinar debate. Além disto, ao enviar solicitação de suspensão temporária das Diretrizes Básicas para Arquitetura Penal por meio de ofício em caráter de urgência e direto ao Presidente do CNPCP, denuncia a elaboração da proposta sem qualquer conhecimento prévio ou debate público sobre sua necessidade. Inclusive, em nota, o CNJ se pronunciou sobre o pedido do DEPEN, afirmando que tanto o CNJ quanto o STF possuem decisão firme sobre a ilegalidade do uso de contêineres e que o pedido revela que as recomendações preventivas não foram tomadas ou falharam.[17]

AD e PFM: No artigo, você trabalhou com algumas cartas sobre o adoecimento por COVID-19 em prisões. Que questões psicológicas que você identificou? Levando em conta a relação entre segurança pública e políticas públicas de saúde (física e mental) no país, como você analisa os relatos dessas cartas?

PB: Cartas (de despedida) de pessoas presas têm sido escritas a seus (suas) companheiros (as) e familiares, as quais concretizam a política de morte que Achilles Mmembe afirma como uma necropolítica. “Apavorado(a)” é a palavra que se repete em algumas dessas cartas, deixando evidente o sentimento de abandono daqueles que, diante das precárias condições a que estão submetidos, não prevêem outro destino senão a doença, o sofrimento e a morte. Escritos como “Espero que você nunca se esqueça de mim. Porque aonde eu estiver nunca vou te esquecer”, ou “Eu quero que você saiba que você foi a melhor mulher do mundo”, ou ainda “Te amo e obrigado por tudo o que você fez por mim” refletem, pelo uso de verbos pretéritos, o modo como tais pessoas encontram-se afetadas pelas políticas de morte. E, especificamente em relação à covid-19: “Minha vida, eu não sei mais o que fazer. Estou há 20 dias com febre. Ela vai e volta. De vez em quando, dor de cabeça e tosse seca. Não sinto gosto de nada. E nem cheiro de nada. Estou apavorado. Não sou só eu. Tem vários com esses sintomas, vida” e ainda: “pede pra minha mãe e pra meu pai fazerem uma corrente de oração bem forte, pois o negócio está sério”. Outro sintetiza: “Nenhum ser humano se importa com nós”.[18] Uma crise dentro de outras existentes – historicamente – e, mais uma vez, fatores socioeconômicos, intimamente vinculados a classe-raça-cor, determinam quem vive e quem morre. Ressalto que a subnotificação da Covid-19 tem produzido realidades distorcidas, sendo que tais marcadores não têm sido levados em conta pelas estatísticas e tornam-se operadores das políticas de morte. O mesmo seria dizer que, ao não reconhecer as especificidades, à medida que deixa faltar – não planeja melhorias, não investe, não garante as condições dignas de atendimento, de cuidado à saúde, congela investimentos nas áreas sociais e de saúde e desregulamenta direitos trabalhistas  – o Estado opera ativamente para extermínio das pessoas mais pobres e no aumento da desigualdade social. O que é o desejo da morte para quem não é autorizada a vida? Uma crise associada à condição de um Estado suicidário, como apontado por Vladimir Safatle,[19] afirma a morte como política de governo das vidas. Vidas para as quais a liberdade, a dignidade, e o luto, nunca se fazem possível.

AD e PM: Vamos olhar agora para o caso das Casas de Custódia e Tratamento, onde os internos cumprem as chamadas medidas de segurança. Hoje, não haveria uma ambiguidade entre o Código Penal e a Lei de Reforma psiquiátrica que, em tese, fecha tais instituições? Nesse contexto de pandemia, como você vê a situação dessas instituições?

PPB: A Constituição de 1988 inaugurou no Brasil o estado democrático de direito e, fundada na dignidade humana, passou a prever que nenhuma pena passará da pessoa do condenado, o que pressupõe a culpabilidade como condição elementar para a aplicação de sanções penais. Tem-se, portanto, uma situação jurídica não somente ambígua, mas contraditória em que, de um lado, a legislação penal prevê a medida de segurança que, a despeito da ausência de uma definição explícita acerca de sua natureza jurídica, é tida como uma espécie de sanção penal imposta à pessoa em sofrimento psíquico, mesmo diante de sua absolvição pelo juiz; ao passo que, de outro lado e  num patamar superior, a Constituição, que somente autoriza a imposição da pena ao condenado, ou seja, ao réu que tenha capacidade penal e que seja declarado culpado na sentença. Contudo, mesmo diante da nova ordem constitucional, o manicômio judiciário (sob o nome de Casas de Custódia e Tratamento) ainda se faz presente na grande maioria dos estados brasileiros, onde persiste a internação por força de medida de segurança em ambiente de permanente violação de direitos humanos. Espaço destinado veladamente à exclusão social, nem de longe o hospital de custódia e tratamento psiquiátrico se assemelha a uma unidade de saúde, sendo inapto para promover o tratamento das pessoas para lá encaminhadas pelo Poder Judiciário. De sua parte, a Lei 10.216/2001, que ficou mais conhecida como Lei Antimanicomial, veio regular a atenção em saúde mental no país e trouxe regras que identificam a internação psiquiátrica como um dispositivo de saúde e que, como tal, deve observar os direitos da pessoa, voltando-se exclusivamente ao interesse de beneficiar sua saúde. A internação psiquiátrica, nos termos da Lei Antimanicomial, passa a ser algo absolutamente distinto, portanto, de expedientes de natureza eminentemente punitiva ou de segurança. Essa mesma lei orienta a elaboração e implementação de políticas públicas para o atendimento das pessoas acometidas de transtornos mentais, cujos direitos e proteção devem ser assegurados sem discriminação quanto à raça, cor, sexo, orientação sexual, religião opção política, nacionalidade, idade, família, recursos econômicos, grau ou gravidade do transtorno, ou qualquer outra forma de distinção. Outro ponto de grande importância é a vedação expressa da internação psiquiátrica em unidades que apresentem características asilares, o que evidencia a ilegalidade do manicômio judiciário, dentro ou fora da pandemia, em tempos de Reforma Psiquiátrica.

Notas

[1] Livro publicado no Brasil pela editora Graal, em 1988.

[2] Medida de segurança é aplicada aos crimes em que o réu (ou ré) é considerado(a) inimputável, isto é, não tem consciência ou responsabilidade pelo ato infracional que cometeu.

[3] https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-02/brasil-tem-mais-de-773-mil-encarcerados-maioria-no-regime-fechado

[4] https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/08/22/stf-determina-fim-da-superlotacao-em-unidades-socioeducativas-de-cinco-estados.ghtml

[5] https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/08/justica-manda-governo-de-sp-tomar-medias-contra-covid-19-em-presidios.shtml

[6] Doutor em Psicologia e professor associado do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Conselheiro-presidente do CRP-RJ e membro da diretoria do CFP (2016-2019). Atualmente, pelo CFP, compõe o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (CNPCT).

[7] Bicalho, Pedro Paulo; Lima, Claudia Henschel de & Davi, Jessica da Silva. Da crise à pandemia: da letalidade como política às políticas editoriais de resistência. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 72(2): 3-7, 2020.

[8] Galindo, María (2020). Desobediencia, por tu culpa voy a sobrevivir. In Pablo Amadeo (org.) Sopa de Wuhan: pensamiento contemporaneo en tiempos de pandemias (pp. 119-128). Buenos Aires: Aspo Editorial.

[9] https://static.poder360.com.br/2019/12/mercado-de-trabalho-20193T-ipea.pdf

[10] Zizek, Slavoj (2020). El coronavirus es un golpe al capitalismo a lo Kill Bill… In Pablo Amadeo (org). Sopa de Wuhan: pensamiento contemporaneo en tiempos de pandemias (pp. 21-28). Buenos Aires: Aspo Editorial.

[11] https://extra.globo.com/noticias/rio/abismo-entre-ricos-pobres-se-reflete-nas-mortes-por-coronavirus-24407597.html

[12] https://apublica.org/2020/05/em-duas-semanas-numero-de-negros-mortos-por-coronavirus-e-cinco-vezes-maior-no-brasil/

[13] https://n-1edicoes.org/001.

[14] Costa, Jaqueline Sério da; Silva, Johnny Clayton Fonseca; Brandão, Eric Scapim Cunha & Bicalho, Pedro Paulo Gastalho. Covid-19 no Sistema Prisional Brasileiro: da indiferença como política à política de morte. Psicologia & Sociedade, no prelo.

[15] A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) versa sobre controvérsias constitucionais ou violações de preceitos, definidos pela Lei n° 9.882, de 3 de dezembro de 1999: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9882.htm.

[16] http://g1.globo.com/Noticias/Brasil/0,,MUL1530490-5598,00-PROBLEMAS+NO+SISTEMA+CARCERARIO+DO+ESPIRITO+SANTO+SAO+DENUNCIADOS+NA+ONU.html

[17] https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/04/21/cnj-critica-possibilidade-de-estruturas-temporarias-para-abrigar-presos-no-combate-ao-coronavirus.ghtml

[18] https://www.geledes.org.br/apavorado-com-o-risco-da-covid-presos-enviam-cartas-de-amor-e-despedida/

[19] https://n-1edicoes.org/004

Como citar este texto

BICALHO, Pedro Paulo. Segurança Pública, Atenção Psicossocial e o Covid-19 nas prisões: entrevista com Pedro Paulo Bicalho. [Entrevista concedida a] Allister Dias e Pedro Felipe Muñoz. Site do Observatório História e Saúde, 26 de set. 2020. Disponível em: https://ohs.coc.fiocruz.br/posts_ohs/seguranca-publica-atencao-psicossocial-e-o-covid-19-nas-prisoes-entrevista-com-pedro-paulo-bicalho/. Acesso em: XX de xxx. de 20XX.

Leia também