O pesquisador e coordenador do OHS Carlos Henrique Paiva concedeu entrevista à revista Radis, abordando em análise histórica a construção da atenção primária no país.
Na entrevista, conduzida por Karine Rodrigues, o pesquisador comenta a origem de conceitos hoje já estabelecidos, como Atenção Básica, Atenção Primária à Saúde e Saúde da Família trazendo os debates históricos que levaram à formalização das políticas de saúde no país. Ele comenta os desafios que ainda se impõem sobre uma real efetivação do direito à saúde no Brasil, pública, gratuita e universal, diante dos diferentes contextos urbanos e interesses existentes. Confira.
“Precisamos construir soluções para os problemas históricos do SUS”
Carlos Henrique Assunção Paiva, historiador da COC/Fiocruz, fala sobre as disputas para a construção da atenção primária no Brasil
Até 1994, quando foi criado o Programa Saúde da Família (PSF) no Brasil, hoje conhecido como Estratégia Saúde da Família (ESF), o atendimento à população brasileira era prestado por uma ampla e descoordenada estrutura ambulatorial e hospitalar pública e privada e por uma rede formada por postos e centros de saúde já muito precarizados, relata o historiador Carlos Henrique Assunção Paiva, coordenador do Observatório História e Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz).
Ao longo de seus 30 anos de existência, a Estratégia Saúde da Família, atualmente constituída por cerca de 37 mil Unidades Básicas de Saúde espalhadas em todo o Brasil, tem sido central na organização de um sistema que busca garantir a saúde como um direito social e uma obrigação do Estado. Mas, desde a sua criação, a Atenção Primária à Saúde (APS) tem sido marcada por concepções e projetos em disputa que resultaram em dois modelos: um abrangente, promotor do atendimento universal; e outro seletivo, voltado para problemas mais prevalentes de saúde entre as populações de maior vulnerabilidade.
“Embora a nossa APS, tal como definida na Política Nacional de Atenção Básica (Pnab), esteja formalmente vinculada àquilo que identificamos como abrangente, na prática, em diferentes contextos urbanos, ela enfrenta muitas dificuldades institucionais para cumprir o que se encontra formalmente formulado”, pontua Carlos. Ele reconhece os Segundo ele, que reconhece os “esforços heroicos das equipes multiprofissionais” e pontua problemas de inadequação no financiamento e na infraestrutura e ausência de uma política de formação e de regulação e gestão do trabalho que permita a fixação de trabalhadores na APS, sobretudo médicos.
Em entrevista, Carlos detalha o surgimento do conceito de atenção básica e a consolidação da ESF, discorre sobre a “situação dramática” dos órgãos de representação da classe médica e analisa as dificuldades de fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS) em um cenário marcado pelo liberalismo, “que dissemina na sociedade uma ideia da saúde que não é compatível com a de um bem público, mas do consumo de serviços, e que estão disponíveis para quem tem condições de pagar”.
Professor do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da COC/Fiocruz, ele destaca que a análise histórica pode se apresentar como uma importante ferramenta para a compreensão dos desafios no campo da saúde. E lança, ele mesmo, uma pergunta: “Qual é o projeto de país que nós, no campo progressista, temos? Havendo um projeto, temos comunicado adequadamente nosso projeto e as ideias que lhe dão suporte para as populações deste imenso país?”
Radis: É por meio da atenção básica ou atenção primária à saúde (APS) que a população tem o primeiro contato com o sistema de saúde. Quando e em que contexto surgiu esse conceito?
Carlos: A APS, conforme conhecemos hoje em nosso país, detém atributos que se institucionalizaram em uma política nacional, sendo alguns deles a integralidade, a coordenação, a abordagem familiar e o enfoque comunitário. Esses atributos são, por sua vez, decorrentes de diversas posições críticas às práticas médicas e à própria organização da saúde pública ao longo de décadas por parte de sanitaristas e pensadores da saúde. Há, assim, raízes históricas muito profundas no desenvolvimento dessas ideias relativas à APS bem como às suas respectivas práticas. Por exemplo, a partir dos anos 1910 e em diversos momentos da história da saúde pública brasileira, testemunhamos a existência de trabalhadores de saúde realizando a tarefa de visitar indivíduos e famílias em situação de vulnerabilidade para tratar questões de saúde, como foi o caso das visitadoras sanitárias, uma prática que já valorizava ações de educação junto a famílias, e que guarda semelhanças com a do agente comunitário de saúde (ACS) em nossos dias.
No entanto, será realmente a partir dos anos 1960, pelo menos se considerarmos uma tradição norte-americana de debates, que veremos pela primeira vez a expressão atenção primária. Um estudo publicado no início daquela década por professores de clínica médica, medicina preventiva e de epidemiologia de um recém-inaugurado curso de medicina da Universidade da Carolina do Norte, sob forte influência do movimento da medicina social, manifestava uma grande preocupação com a formação de médicos capazes de atender às demandas mais frequentes da população por cuidados de saúde. É neste sentido que se dá, até onde pudemos constatar em nossos estudos, a aparição da expressão atenção primária. A partir daí, em organismos como a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), veremos debates em torno dessa expressão se complexificando, de modo que a atenção primária também vai se aproximando de discussões de caráter mais organizacional, incorporando ou se conectando com debates em torno do estabelecimento de uma porta de entrada ou de hierarquização do sistema de saúde. Ou seja, a atenção primária vai se aproximando da concepção que manifestamos formalmente em nossa política nacional. Já adianto, não se trata de um movimento linear e desprovido de contradições. Pelo contrário. Há muitas disputas em torno do projeto da APS, considerando seus objetivos e alcance.
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