“Não queremos sua ordem, nem o seu progresso. A chance que nos resta é um Brasil cocar”. A letra do samba-enredo da escola Acadêmicos do Salgueiro deu voz à simbologia Yanomami, no Sambódromo do Rio de Janeiro, e reverberou uma contundente mensagem. Mais que contestação e denúncia, o texto explicita que os povos originários e a preservação de nossas florestas por eles protagonizada são a saída para a sobrevivência das espécies que habitam o planeta Terra. O recado que o Carnaval de 2024 desfilou em alegorias, cores e sons, porém, vem sendo dado há décadas por indigenistas, documentaristas e historiadores, como mostram os filmes sobre o povo Uru Eu Wau Wau e a destruição de suas terras, em Rondônia, temas deste artigo.
O historiador e documentarista inglês John Adrian Cowell (1961-2010), cujo acervo está disponível para consulta na Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, registrou pioneiramente, a partir dos anos 1960, o avanço do Estado brasileiro sobre a Amazônia. O projeto expansionista e de exploração do território nacional foi registrado por Cowell em sete séries de reportagens. Em uma delas, “A década da destruição” (1980), é possível constatar a atualidade da obra do cinegrafista e, sobretudo, sua importância para a compreensão da lógica que ainda sustenta e justifica a derrubada da floresta e a gradual extinção dos povos originários.
As filmagens de “A década da destruição” foram iniciadas por Cowell e o cinegrafista brasileiro Vicente Rios em janeiro de 1980, no estado de Rondônia, incluíram diversas áreas da Amazônia e se prolongaram até setembro de 1990. Dos registros resultaram nove documentários. São eles “Na trilha dos Uru Eu Wau Wau”, “O destino dos Uru Eu Wau Wau” (continuação do primeiro), “O caminho do fogo”, “Nas cinzas da floresta”, “Tempestades da Amazônia”, “Financiando o desastre”, “Montanhas de ouro”, “Eu quero viver”, “Terra e morte”, “A década da destruição”.
Na série ganham destaque os filmes “Na trilha dos Uru Eu Wau Wau” e “O destino dos Uru Eu Wau Wau”. Mais que testemunhar os primórdios do quase absoluto extermínio desses indígenas brasileiros em Rondônia, cujas terras foram recentemente invadidas por grileiros (fonte: Amazônia Real), as películas evidenciam o projeto estatal que impulsionou a migração de colonos pobres, principalmente do Nordeste, para o seio da floresta. Em busca de um futuro que nunca chegaria para eles, atearam fogo, extraíram madeira e minério e encontraram miséria e morte.
“Os índios foram dizimados por epidemias e 60-80% deles morreram até o final da década. Para os colonos, não foi muito melhor. O solo ali era tão ruim que, após seis anos, 60% da terra que eles haviam desmatado e plantado, com tanto entusiasmo, já tinha sido abandonada”, afirmou Cowell no catálogo da mostra de filmes “A Amazônia segundo Adrian Cowell”, exibida em 2008 no Rio de Janeiro e em Brasília. A mostra recebeu a curadoria da cientista política e documentarista aposentada da Fiocruz Stella Oswaldo Cruz Penido, que trabalhou diretamente com Cowell e foi responsável pelo projeto “Histórias da Amazônia – 50 anos de Memória audiovisual”. O projeto possibilitou a organização e transferência do acervo de Londres, Inglaterra, para o Brasil, em 2008, conforme explicou a pesquisadora em reportagem do Café História.
Ainda hoje, mesmo diante do iminente colapso climático e de estudos que apontam as Terras Indígenas como atores-chave para a preservação ambiental, a derrocada da floresta amazônica documentada por Cowell persiste e já afeta negativamente o agronegócio, constatam pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em recente artigo divulgado pelo Observatório do Clima. Segundo o estudo, publicado na Royal Meteorological Society, o desmatamento na Amazônia brasileira para criação de gado e plantio extensivo de soja tem consequências significativas para o sistema climático, pois impacta os padrões de chuva, a temperatura do ar e o início da estação chuvosa, o que vem reduzindo substancialmente a produtividade dos grãos.
O Uru Eu no cinema mundial
Os Uru Eu Wau Wau também são tema do premiado “O território”*. Lançado em 2022, o documentário dirigido pelo cineasta Darren Aronofsky (diretor de ‘Cisne Negro’) tematiza a agenda expansionista que queima e extrai árvores centenárias da Terra Indígena destes povos (homologada por decreto presidencial em 1991), destacando a coragem de brasileiros que lutam por manter a floresta em pé e proteger os povos que a mantêm viva.
No ‘território’ dos Uru Eu, a resistência protagonizada por ativistas locais e jovens lideranças indígenas ganha o reforço de drones e câmeras filmadoras, utilizadas para o monitoramento e registro das áreas invadidas e desmatadas, e o apoio de organizações nacionais e internacionais de defesa dos direitos humanos. As imagens do documentário dão o tom de uma luta individual, solitária e violenta que vem ceifando vidas, como a do líder Ari Uru-Eu-Wau-Wau, assassinado por denunciar as invasões de posseiros em suas terras.
A despeito das mais de quatro décadas que separam a série de Cowell e o filme de Aronofsky, imagens e falas revelam a incapacidade do homem dito “civilizado” em compreender que é preciso “virar a mesa” e reduzir drasticamente o desmatamento da floresta amazônica. A lição está dada pelo jovem líder Bitaté em uma das cenas de “O território”: “a floresta é o coração, não do Brasil, mas do planeta em geral”.
E mais:
Para assistir aos filmes de Adrian Cowell sobre os Uru Eu Wau Wau citados neste artigo, acesse:
Para saber mais sobre os Uru Eu Wau Wau, acesse Uru-Eu-Wau-Wau – Povos Indígenas no Brasil (socioambiental.org)
*“O território”, produção Brasil-EUA-Dinamarca (2022) dirigida por Alex Pritz, está disponível no canal de streaming Disney+.
Como citar este texto
D’AVILA, Cristiane. Indígenas brasileiros, uma história de extermínio e resistência. Site do Observatório História e Saúde – COC/Fiocruz, 2024. Disponível em:<https://ohs.coc.fiocruz.br/posts_ohs/indigenas-brasileiros-uma-historia-de-exterminio-e-resistencia/>.
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