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Entrevista com Paulo Basta: a contaminação por mercúrio em pescados da Amazônia

15/06/2023

Entrevista com Paulo Basta, pesquisador da ENSP/Fiocruz. Por Carolina Vaz e

Foto de capa: Jeferson Mendonça – COC/Fiocruz. 

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Nesta entrevista exclusiva, o pesquisador Paulo Basta, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), fala ao Observatório História e Saúde sobre suas recentes pesquisas e propostas de políticas públicas para erradicar no país o uso do mercúrio, produto fabricado apenas fora do país. Ele é coordenador do grupo de pesquisa Ambiente, Diversidade e Saúde, que recentemente divulgou o estudo “Análise regional dos níveis de mercúrio em peixes consumidos pela população da Amazônia brasileira: um alerta em saúde pública e uma ameaça à segurança alimentar”, revelando o risco de contaminação por mercúrio para populações de todas as classes sociais de seis estados da Amazônia. O estudo vem sendo debatido junto a uma proposta de Medida Provisória, derivada do Projeto de Lei 5490/2020, tendo como conteúdo o Plano para Erradicação da Contaminação por Mercúrio no Brasil.

Na entrevista, realizada na ocasião do seminário “Diálogo entre saberes para transformações planetárias”, seminário inaugural da Cátedra Oswaldo Cruz – Unesco, em início de junho, o pesquisador fala sobre sua carreira na medicina trabalhando com povos indígenas, aborda a segurança alimentar desses povos ameaçada pelo garimpo, extrativismo e outras atividades do agronegócio, e apresenta em detalhes os resultados do estudo de mercúrio em pescados. Confira.

Paulo, seu trabalho está inscrito no tema da saúde indígena e voltado a questões relativas ao enfrentamento das doenças infectocontagiosas, à interiorização dos serviços de saúde e à fixação dos profissionais em regiões onde se encontram essas populações. Como sanitarista, você se percebe herdeiro de quais tradições ou discussões?

O que me motivou a trabalhar com essa temática foi um sonho de criança. Quando eu era garoto nos anos 70, no meio da ditadura militar, vendo televisão em casa com a família, às vezes apareciam algumas inserções do projeto Rondon. Eu vi aquelas imagens no interior do país e as comunidades indígenas e eu falava: quando eu crescer quero trabalhar com isso. Anos depois, já formado em medicina, recebi um convite para trabalhar em Roraima, na Comissão PróYanomami, a antiga CCPY, ONG fundada para a criação do parque Yanomami. Esse foi o primeiro grande passo de transformação na minha vida. Curiosamente, antes de fazer esse movimento todo eu já tinha lido alguns autores, bebido das fontes dos sanitaristas. Meu primeiro contato com esse universo foi com Darcy Ribeiro, com a clássica obra dele “Os índios e a Civilização”. Depois eu conheci o Moacyr Scliar, médico também, que escreveu “A Majestade do Xingu”. É o livro em que ele narra a trajetória do Noel Nutels.

A partir de todas essas leituras e da sensibilização prévia que eu tinha desde criança, em 1999 fui para Roraima trabalhar na Terra Indígena Yanomami. Foi depois de ter ocorrido a operação Selva Livre, no governo Collor, em que se iniciou a desintrusão de 40.000 garimpeiros que estavam dentro do território. Houve incentivos do próprio governo federal para a estruturação sanitária da região. Então fui trabalhar no atendimento às comunidades no interior da floresta. Depois de pouco mais de um ano fui para o distrito leste de Roraima, onde estão outras 10 etnias, Macuxi, Wapichana e outras. Aí tive conhecimento do livro “Saúde e Povos Indígenas”, editado pelo Carlos Coimbra e publicado em 1994 pela editora da Fiocruz. Quando tive acesso a esse livro, ainda morando em Roraima, falei: quero ir para a Fiocruz. Daí fiz mestrado na Ensp orientado pelo Carlos Coimbra, que trabalhava com tuberculose, e acabei abraçando esse tema. À medida que o trabalho foi se desenvolvendo, fui convidado a fazer a progressão para o doutorado. Esse projeto ganhou outras dimensões. Acabei indo para Rondônia trabalhar com o povo Paiter Surui, da Terra Indígena 7 de Setembro. Em paralelo segui trabalhando com a saúde indígena e me tornei supervisor do programa Mais Médicos. Fiz supervisões em Rondônia, região de Porto Velho, Guajará-Mirim, fronteira com Bolívia e em territórios do povo Wari, área em que Noel Nutels passou. Desde então, venho trabalhado na temática da interiorização do serviço de saúde. Mas as políticas públicas não avançaram, desde o tempo das expedições de Carlos Chagas para o interior da Amazônia, lá no começo do século XX, infelizmente.

A fome e a insegurança alimentar têm se apresentado como importantes problemas de saúde pública em nossos dias. Qual a peculiaridade desse problema quando se trata das comunidades indígenas?

A fome começou exatamente nesse momento de interiorização do país, no final dos anos 1940, quando começou a expansão do agronegócio, das monoculturas. Quando não executavam genocídios deliberados, iam expulsando esses povos de suas terras originais e os colocando nas periferias da cidade, como pobres. Quando você tira o povo tradicional do seu território de origem, você inaugura o processo da fome. Não tem mais o que plantar, não tem mais o que colher, não tem o que pescar, não tem animais silvestres para caçar. Ao mesmo tempo em que você tira a pessoa do seu território original, você não dá a ela condições de trabalho, de desenvolvimento, não a insere no mercado. E no governo das trevas da última gestão, essa situação ficou ainda mais grave, porque houve um incentivo explícito do presidente da República aos crimes ambientais, à devastação das florestas, às queimadas, à mineração de ouro. A situação que a gente observa hoje na Terra Indígena Yanomami é o ápice dessa crise, onde comunidades inteiras têm altos índices de desnutrição infantil e em idosos.

O garimpo, quando entra nos territórios tradicionais, devasta a cobertura vegetal, muda os cursos dos rios, escava buracos para a exploração de minérios, processo que provoca uma ameaça enorme para as espécies nativas da flora e fauna locais. Os grandes mamíferos, que são as caças preferenciais dos indígenas, acabam sendo afugentados, ou os próprios garimpeiros os abatem. Os povos tradicionais então têm que cobrir distâncias cada vez mais longas para obter um animal de caça. Já os garimpeiros utilizam a situação da fome como estratégia de cooptação das comunidades, distribuindo cestas básicas, trazendo lideranças jovens para trabalhar no garimpo com a promessa de enriquecimento fácil, às vezes trocam favores sexuais com as mulheres, o que no caso é uma violência sexual. E a cestas básicas são paupérrimas em proteínas e nutrientes, riquíssimas em gorduras, sal, açúcar e ultraprocessados. Como consequência, ocorre o que a gente chama de dupla carga de desvios nutricionais, pois dentro das mesmas comunidades convivem crianças e idosos com altos níveis de desnutrição e adultos jovens com síndromes metabólicas, sobrepeso, obesidade, diabetes, hipertensão, coisas que não existiam antes desse contato tumultuado.

Você fez um estudo revelando que seis estados da Amazônia e 17 municípios estão contaminados por mercúrio acima do limite aceitável. Temos ainda a questão do Marco Temporal, como fica a saúde dessas comunidades?

Esse trabalho é um esforço conjunto do grupo de pesquisa “Ambiente, Diversidade e Saúde” em parceria com a WWF Brasil, Greenpeace, Instituto Socioambiental, Instituto de Pesquisas e Formação Indígena, do Amapá, e a Universidade de Lavras. Fizemos um desenho do estudo exatamente com o objetivo de sensibilizar a sociedade brasileira e a sociedade amazônida, em particular, de que o problema da contaminação por mercúrio não está restrito às terras indígenas da Amazônia. Esse problema é um problema que está se democratizando, está se espalhando para toda a sociedade.

Nós fomos a 17 cidades em seis estados da Amazônia, incluindo as capitais, e fomos às feiras livres, aos mercados e, diretamente com pescadores, comprar os peixes que alimentam as famílias que vivem em grandes centros urbanos. Pegamos esses peixes, pesamos, medimos, fizemos uma identificação por nome popular e científico, avaliamos que posição ocupa na cadeia trófica. Extraímos amostras de tecido muscular desses pescados e as enviamos para análise dos níveis de concentração do mercúrio. No período de março de 2021 a setembro de 2022, coletamos 1.010 amostras de pescados. Os resultados revelaram que 21,3%, mais de 1/5 delas, apresentavam níveis de mercúrio acima dos limites recomendados pela Anvisa para a comercialização do pescado. A Anvisa estabelece que, para vender um peixe, ele não pode ter mais do que 0,5 microgramas de mercúrio para cada grama de tecido muscular. E o nosso estudo revelou que 21,3% dos peixes tinham níveis acima desse limite. Então essa foi a primeira mensagem do nosso estudo.

Peixes no mercado Ver-o-peso, em Belém (PA). Foto: Décio Yokota/Iepé

A segunda mensagem é: com base nesse achado, nós aplicamos uma metodologia da OMS para avaliação do risco à saúde atribuído ao consumo de pescado contaminado. Elegemos quatro grupos populacionais (homens adultos, mulheres em idade fértil, crianças de 5 a 12 anos e crianças de 2 a 4 anos) e estimamos um peso médio para cada grupo. Com base nessas estimativas, estabelecemos um padrão de consumo diário de 100 gramas de pescado por dia. Então pegamos o nível médio de mercúrio, os quatro grupos populacionais e seus pesos médios, e a estimativa do consumo diário. Com essas informações chega-se a um número de Ingestão Diária de Mercúrio de cada grupo populacional: se qualquer cidadão ingerir 0,1 micrograma de mercúrio para cada quilograma de peso, por dia, essa pessoa está colocando sua saúde em risco.

Aplicando essa metodologia, nós observamos que os resultados são alarmantes. Em relação aos níveis de contaminação do pescado, o estado mais afetado foi Roraima: 40% dos pescados coletados tinham níveis de mercúrio acima do recomendado pela Anvisa. Seguramente isso é decorrência do garimpo em atividade na região. Em segundo lugar, o Acre. Em terceiro Rondônia, em quarto Amazonas, em quinto Pará e em sexto Amapá. E quando a gente faz essa estimativa de risco da ingestão diária de mercúrio, a gente percebe que, por exemplo, mulheres em idade fértil em Roraima consomem nove vezes mais mercúrio do que é considerado uma dose de referência segura. Crianças de 2 a 4 anos consomem 32 vezes mais mercúrio do que é considerado seguro. Então, com certeza essa ingestão muito acima dos padrões vai colocar essas pessoas em risco de ter problemas de saúde, e essa é a mensagem que a gente quis passar.

E foi com esse estudo que você propôs o plano para erradicar a contaminação por mercúrio no Brasil, que está sendo oferecido já como Medida Provisória ao MS?

Sim, baseado nos achados desse estudo e de outros trabalhos. Eu venho trabalhando com a questão do mercúrio desde 2014, por conta de uma demanda do Davi Kopenawa. A gente já fez algumas análises de peixe também dentro do povo Munduruku. Com base nessa experiência, a gente vem dialogando com os povos afetados, com alguns parlamentares da bancada ambientalista, com a sociedade civil, com diferentes especialistas. Em 2020, a gente apresentou para o deputado Camilo Capiberibe, do Amapá, e ele protocolou na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 5490, que prevê a erradicação do mercúrio. Agora, para resgatar a pauta, nós extraímos de dentro do projeto de lei só o componente saúde. Porque o PL tem componentes de meio ambiente e legislação. Nós apresentamos para o Ministério da Saúde uma proposta de Medida Provisória, que tem como carro-chefe esse plano para erradicação da contaminação por mercúrio no Brasil. Esse plano envolve a criação de centros de referência para tratamento das pessoas contaminadas por mercúrio, então precisa ter formação para os profissionais da saúde. Além disso, tem que haver notificação dos casos. Porque só o nosso grupo de pesquisa já fez mais de 600 diagnósticos de pessoas contaminadas que não aparecem nas estatísticas oficiais. É uma série de ações encadeadas que nós apresentamos na Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente (SVSA), por intermédio de contatos com a ministra Nísia e gestores do MS.

E sobre a contaminação de mercúrio, quais são os sinais e sintomas a curto e longo prazo?

Falando da exposição ao mercúrio, nós temos basicamente três vias de exposição. Uma inalatória, outra dermatológica, outra digestiva. A inalatória e a dermatológica são basicamente concentradas na exposição ocupacional, no minerador. E a digestiva é basicamente comer peixe contaminado. O consumo da água não contamina, porque o mercúrio metálico tem densidade 13 vezes maior do que a da água, então não se dilui. Ele sedimenta no fundo do rio, sofre um processo de transformação mediado por bactérias, e se transforma numa outra forma de mercúrio, o metilmercúrio, que impregna na carne do peixe, dos jacarés, nas algas, etc.

No caso dos garimpeiros, quando ele está trabalhando numa determinada área que tem terra e pedra e suspeita que tem ouro ali dentro, ele derrama o mercúrio por cima e o mercúrio gruda no ouro, facilitando a identificação. Só que na hora de vender, o ouro amalgamado no mercúrio não tem valor comercial. Então ele queima o mercúrio e inala esse vapor, o que provoca pneumonite química. A pessoa tem tontura, convulsão, desmaio, alucinação. A exposição dermatológica é a mesma coisa, se o garimpeiro tem uma corte na mão, um arranhão, fissura, pode absorver o mercúrio.

Nas populações que se contaminam por via digestiva, o processo é lento e insidioso. A cada refeição o mercúrio vai se depositando e provocando lesões nos tecidos dos órgãos, e essas lesões vão produzir sinais e sintomas brandos que se confundem com uma série de outras doenças, como dor de cabeça crônica, insônia, irritabilidade, gosto metálico na boca, zumbido no ouvido, perda do campo visual, tremores nas mãos, nos pés, hipertensão. O tratamento principal é cessar a exposição. Na mulher grávida, que a gente considera o grupo mais vulnerável, o mercúrio cai na corrente sanguínea e vai passar para a criança pela placenta. Alguns estudos falam que a concentração de mercúrio no cérebro dos bebês chega a ser de cinco a sete vezes maior do que a concentração de mercúrio circulando no sangue da mãe. Então pode haver consequências severas para essa criança e essa mãe.

Análise do pescado na Amazônia. Foto: Maria Silveira/Iepé

Na sua opinião, como nós, pesquisadores, comunicadores, historiadores das ciências da saúde podemos contribuir pra esse debate?

Eu acho que criar espaços dentro das instituições de ensino, de pesquisa, para popularizar essa temática, levar informações qualificadas para a sociedade civil, evidências científicas de que o problema está posto e tem consequências dramáticas para a saúde da população, para o desenvolvimento regional. Os próprios políticos, senadores, deputados, originários dessas regiões têm as famílias lá e também estão sendo potencialmente afetados por essa contaminação. A gente tem que, não só na Academia falar sobre isso, mas estimular a sociedade falar sobre isso. Isso tem que estar na mesa do bar, tem que estar na mesa do almoço da família, no bate-papo dos amigos, no ambiente de trabalho.


Paulo Basta é médico pela Faculdade de Medicina da Fundação ABC (1993), possui especialização em Medicina do Trabalho pela Universidade de São Paulo (1994) e especialização em Saneamento Ambiental pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (1998). É Doutor em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz (2005) e Pesquisador Titular da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Coordena o grupo de pesquisa Ambiente, Diversidade e Saúde da ENSP/Fiocruz e é supervisor da área indígena do Programa Mais Médicos, do Governo Federal.

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